Plataformas Digitais e Cidadania Digital – um Conto de Duas Cidades?

O artigo pretende partilhar um percurso de análise às várias dimensões da cidadania digital e como é que poderão encontrar não só ferramentas de expressão no contexto das plataformas digitais, mas também desafios à sua plena realização.

It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of light, it was the season of darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair.”, Charles Dickens, a Tale of Two Cities.

Na sua obra lançada em 1859, Charles Dickens conta-nos uma história de disrupção política e turbulenta mudança social, numa estrutura pendular e oscilante entre as cidades de Paris e de Londres no último quartil do século XVIII.[1]

É essa mesma lógica dual que pretendi importar para a análise das tensões entre a cidadania digital e o locus do seu exercício – as plataformas digitais – que também têm sido palco e reflexo de, porventura, não menos profundas alterações político-sociais do que aquelas vividas no século XVIII e relatadas com mestria por Dickens.

Contudo, antes da descrição dessas tensões e das suas formas de concretização, importará esclarecer aquilo que se deve ou pode entender de cada um destes dois polos.

Numa definição muito próxima da realidade da educação digital – e espelhando essa mesma preocupação – o Conselho da Europa define a cidadania digital como “[a] interação competente e positiva com tecnologias digitais (de criação, de trabalho, de partilha, de socialização, de investigação, de entretenimento, de comunicação e de aprendizagem); participando ativa e responsavelmente (por referência aos valores, às capacidades, às atitudes e ao conhecimento) em comunidades (locais, nacionais e globais) em todos os níveis (político, económico, social, cultural e intercultural); estando envolvido num duplo processo de aprendizagem ao longo da vida (em contextos formais, informais e não formais) na defesa contínua da dignidade humana”.[2]

Esta definição parece-me apresentar algumas virtuosidades. Desde logo, a sua abrangência quanto às formas de interação, podendo definir-se como o “âmbito objetivo” do exercício da cidadania digital (e que compreende diversas manifestações, como a vertente criativa, a científica, de entretenimento e também a comunicativa), bem como a sua abrangência quanto aos substratos abrangidos ou “níveis”, procurando cobrir várias esferas, desde a esfera política à esfera cultural, passando pela esfera económica.

Por outro lado, uma definição de plataformas digitais afigura-se mais complexa, situando-se no cruzamento entre elementos técnicos e tecnológicos e também finalísticos (ou, em geral, não técnicos). Conforme dão nota e sistematizam Ahmad Asadullah, Isam Faik e Atreyi Kankanhalli entre os primeiros, podem incluir-se o desenvolvimento e produção de software e, entre os segundos, a aptidão para a realização de transações, seja exclusivamente entre profissionais (B2B), seja também com consumidores (B2C).

Conforme já tive oportunidade de ir desvelando acima, o aspeto técnico das plataformas digitais não será tanto aquele que me ocupa nesta análise comparativa. Por outro lado, a aptidão para a realização de transações importará como locus de exercício da cidadania digital na sua vertente económica, mas não a esgota nem abarca todas as outras vertentes.

Tal é claramente revelando pela já sublinhada abrangência da definição de cidadania digital, que embora incorpore um âmbito objetivo de criação e de trabalho, bem como um âmbito económico (no qual se pode revelar o cidadão-criador, o cidadão-consumidor ou o cidadão-trabalhador), onde as transações serão uma manifestação da cidadania digital, existem outras esferas e manifestações que vão para lá da pura lógica sinalagmática das trocas comerciais.

De facto, é uma noção mais ampla de plataformas digitais aquela que aqui me interessa, enquanto arenas ou fora de realização da cidadania digital. Como veremos em mais detalhe adiante, tal noção compreenderá sem dúvida uma dimensão económica (como os mercados ou praças da História também sempre tiveram), mas não se deterá aí.[3]

Essa noção mais ampla – para lá de uma mera noção técnica ou transacional – tem estado no horizonte do legislador europeu ao longo do processo de negociação e discussão do Digital Services Act, que foi já considerado o “mais significativo projecto de reforma da lei da Internet realizado em duas décadas”.

Além de ampla, esta noção é igualmente complexa, na medida em que terá de abarcar uma panóplia diversificada de atividades e de modelos de negócio.[4] Para concretizar esta qualificação/definição, por referência aos digital gatekeepers, o citado paper do Parlamento Europeu adianta um conjunto de critérios quantitativos e qualitativos.

Aqui chegados, importa olhar mais atentamente para o jogo de “luzes e sombras” (ou, dentro da referência a que tenho recorrido e que dá título a este texto, às “duas cidades”), que decorre entre a cidadania digital e as plataformas digitais.

Como já vimos, estas últimas revestem-se de um carácter plural, combinando elementos técnicos com funcionalidades económicas, mas também políticas. É isso mesmo que pretendo demonstrar num exercício prático que nos vai acompanhar ao longo do restante texto.

Assim, numa mesma plataforma digital, um cidadão contemporâneo poderá, utilizando a mesma conta de utilizador (e aqui não posso deixar de realçar que, da mesma forma que a Revolução Francesa nos transpôs a todos da qualidade de súbditos para o estatuto de cidadãos, talvez a Revolução Digital nos tenha transformado de cidadãos em utilizadores), expressar as suas opiniões politicamente comprometidas, publicando as suas obras artísticas partilhando as mesmas com os outros cidadãos-utilizadores e, por fim, se estas colherem o agrado da audiência, transacioná-las.

Simultaneamente, todos os outros utilizadores poderão ter partilhado entre si as obras do nosso artista-ativista, bem como reagido às mesmas, expressando a sua profunda admiração ou o seu inegável desagrado.

A mesma versatilidade que reconheci à cidadania digital, nas suas múltiplas dimensões, encontra afinal e então eco nas capacidades oferecidas pelas plataformas digitais. Estas são lugares de realização e expressão, quer do homo politicus, quer do cidadão-criador, do cidadão-mercador ou do cidadão-consumidor.

Se ficasse por aqui, poderia o leitor pensar – legitimamente – que as plataformas digitais são o éden prometido ou uma autêntica cornucópia de virtudes. Um El Dorado da realização cívica, artística e comunicacional da era contemporânea.

No entanto, a luz projetada contra um corpo gerará uma sombra e assim não podia deixar de ser com as plataformas digitais.

Recorrendo novamente ao exemplo do nosso artista-ativista, pode também ter sucedido – além das maravilhas acima relatadas – que o regime contra o qual se manifestou através das obras tenha reagido com uma campanha brutal de desinformação contra o seu opositor.[5]

Ademais, pode ainda ter sucedido que o artista-ativista que, além de paixões políticas, é animado pela vontade de enriquecer, tenha pago à plataforma para promover de forma destacada as suas obras ou as publicações sobre as mesmas, sem que disso tenham outros utilizadores sido informados. Tal promoção oculta pode ter artificialmente aumentado as vendas e valorizado as obras.

Por fim – e para não exagerar no lado mais negro – pode ainda ter sucedido que a plataforma digital que o artista-ativista usava para contactar e para interagir com a sua comunidade de seguidores e apoiantes tenha decidido nada fazer ou até ser conivente com a interferência do regime a que o artista-ativista se opõe.

Querendo mudar para outra plataforma, o artista-ativista apercebe-se que não pode afinal fazê-lo, sem perder todo o histórico de publicações e interações naquela rede social.

Como o leitor terá percebido, estes exemplos pretendem ilustram situações de desinformação, falta de transparência e ausência de interoperabilidade em ambiente digital. Tais fenómenos podem e constituirão certamente entraves ao exercício pleno de uma cidadania digital.

Estes fenómenos negativos têm ainda o potencial de agravar o fosso entre os “nativos digitais” e aqueles que não o são (uma dicotomia já acentuada pelo Conselho da Europa).

Com efeito, aqueles que não forem “nativos digitais” ou que não estejam capacitados para o exercício pleno da cidadania digital, poderão correr o risco de um “apartheid digital” ou de uma maior exposição aos fenómenos acima relatados, cujo combate apela à dimensão crítica da cidadania digital, que acima houve oportunidade de referir.

Desta forma e aproximando-me da conclusão, creio que a primeira linha de reforço da cidadania digital será sempre a educação.[6]

Contudo, e por outro lado, se a educação para o exercício da cidadania digital oferecerá uma resposta mais estrutural, a regulação servirá para corrigir falhas que vão sendo identificadas.

Muito resumidamente e sem preocupações de exaustividade, no âmbito de iniciativas recentes ou em curso de negociação, deve sublinhar-se a preocupação em matéria de transparência nos rankings endereçada pelo Regulamento 2019/1150, relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (o Regulamento P2B), bem como a promessa que o novo Digital Services Act traz consigo quanto à matéria de reporte de transparência, constituindo inclusive uma obrigação comum aos prestadores de serviços intermediários, de alojamento, às plataformas em linha e às plataformas em linha de muito grande dimensão. Em suma, vi nestas breves linhas uma oportunidade para investigar e refletir sobre as pulsões e os desafios que uma plena cidadania digital enfrenta no contexto das plataformas digitais e de cuja resolução depende a não segregação dos cidadãos entre uma “city of lights” e uma “city of darkness”.


[1] Para uma breve análise da relação entre ficção e história em Um conto de duas cidades, cfr. Literatura, história e memória em Um conto de duas Cidades de Charles Dickens, de Caroline Caputo Pires, disponível aqui

[2] Tradução do autor, do original em inglês disponível aqui.

[3] Pese embora, aqui se note o efeito e a capacidade das plataformas digitais trazerem “novas dinâmicas à contratação”, como sublinha Jorge Morais Carvalho, em “Manual de Direito do Consumo”, 7.ª edição, p. 65

[4] Conforme expressamente referido no paper do Parlamento Europeu “Regulating digital gatekeepers: Background on the future digital markets act

[5] Com muitos exemplos históricos e uma cronologia que começa com a Revolução de Outubro e segue até aos nossos dias, cfr. “Active Measures: the Secret History of Disinformation and Political Warfare” (2020), de Thomas Rid.

[6] E que poderá ser concretizada nas três vertentes do “Digital Citizenship Education Handbook”, do Conselho da Europa:  “Estar online”; “Bem-estar Online” e “Direitos online.

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André Filipe Morais

Associado | Vieira de Almeida
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