A transformação digital tem provocado um impacto assinalável na economia e nos mercados de trabalho, constituindo hoje um dos grandes desafios do mundo laboral. Em especial, despontaram novos modelos de trabalho, de natureza colaborativa, que retiram partido das facilidades que a tecnologia aporta, de uma forma que desafia soluções jurídicas que vínhamos tendo como estáveis.
Este fenómeno colaborativo é dificilmente encapsulado numa definição única, traduzindo uma realidade multifacetada – até mesmo na sua terminologia: economy on demand, gig-economy, crowdworking… – mas que ainda assim evidencia algumas características comuns.
Por um lado, o sistema colaborativo assenta numa lógica de trabalho à peça, publicitada junto de um universo alargado de pessoas disponíveis para o aceitar (a tarefa não é direcionada a um concreto sujeito, antes todos os agentes concorrendo entre si para a sua realização). Por seu turno, a operacionalização do modelo assenta em meios digitais – uma plataforma – que realiza o encontro entre a oferta e a procura. Independentemente de a tarefa ser realizada no mundo físico (e.g. o transporte de pessoas ou bens), ou no mundo digital (e.g. a tradução de um documento), é a plataforma quem junta consumidor e prestador.
As vantagens anunciadas para estes modelos organizativos do trabalho são conhecidas: do lado do consumidor, o acesso a serviços de forma simples e célere (bastando uma app), com um leque alargado de profissionais, e a um preço mais competitivo; do lado do prestador, a concentração de clientela num único (e conveniente) ambiente digital, e um sistema de livre aceitação do serviço que permite ao prestador escolher se, e quando, trabalha, conferindo-lhe ampla flexibilidade na gestão de tempos pessoais e profissionais.
O modelo tem sido tão bem-sucedido que, segundo recentes estudos, a economia das plataformas terá crescido em 500% nos últimos 5 anos, contando já com 28 milhões de pessoas que nelas trabalham só no espaço da UE (número que se estima vir a aumentar para 43 milhões em 2025).
A flexibilidade que as plataformas oferecem ajusta-se à noção de que cada profissional que nelas presta serviços será um trabalhador independente (um profissional liberal), livre para as utilizar à medida da sua necessidade e engenho, podendo dosear o esforço e investimento em função do retorno financeiro que almeja.
Não é por isso de estranhar que a grande maioria do trabalho em plataformas seja qualificado, por quem as gere, como uma prestação de serviços e não como um contrato de trabalho, dado que tratamento distinto subverteria os princípios e objetivos nucleares (o ethos) das plataformas.
Se tomássemos como exemplo o nosso quadro legal nacional (i) onde o contrato de trabalho é definido como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas, e (ii) para preenchimento deste conceito, a lei elenca um conjunto de características (indícios) a partir dos quais se presume a existência de uma relação laboral subordinada, dificilmente reconduziríamos o trabalho em plataforma à noção de contrato de trabalho tal como a conhecemos.
Com efeito, e em regra, o local da prestação não pertence nem é determinado pela plataforma, os equipamentos e instrumentos pertencem normalmente ao prestador, não há um horário de trabalho a observar, nem tão pouco obrigação de prestar um mínimo de horas de serviço, o prestador não aufere uma quantia certa e periódica (o sistema é o inverso, de pay as you work), e, na generalidade dos casos, o prestador não controla nem organiza equipas de trabalho. A tudo isto podemos ainda acrescentar a ausência de exclusividade, a permissão de operar em plataformas concorrentes (sendo frequente que tal ocorra) e a gestão algorítmica na atribuição dos pedidos de serviço (dificultando encontrar aqui uma vontade determinística imputável a um ente jurídico, ou seja, uma direção efetiva da atividade realizada).
Ora, este raciocínio tem sido frequentemente contestado com o argumento de que assenta em pressupostos desajustados. Na medida em que os regimes normativos foram construídos à luz de um conceito clássico de relação laboral (originalmente animado pelo ambiente fabril), não é de estranhar que tanto o conceito, como as características que o fazem presumir, não acomodem adequadamente modelos que divirjam daquela estrutura clássica.
Discute-se por isso hoje nos Tribunais dos países da UE – com diferentes graus de sucesso – a qualificação dos trabalhadores de plataformas como subordinados através de um exercício de reconstrução morfológica do contrato de trabalho, reenquadrando-o no contexto atual, e dele extraindo novos elementos característicos, outros indícios de laboralidade e um novo tipo jurídico (ou pelo menos o alargamento do já existente).
O exercício de interpretação daquilo que, no universo das plataformas, deverá ser a evidência de uma hetero-determinação do trabalho (da qual se extrairia a sua natureza subordinada), passou a valorar outros aspetos, como seja a dependência económica, a existência de um sistema de avaliação (por pontos, ou rating), a aplicação de sanções por má avaliação (inclusive expulsivas da plataforma), a incapacidade de cada indivíduo negociar preços, a existência de sugestões precisas sobre o modo como atuar, a imposição de itinerários ou o controlo permanente da localização por via GPS.
É neste contexto que surge a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais (COM/2021/762 final), a qual tem por objetivos garantir que as pessoas que trabalham nas plataformas tenham — ou possam obter — um estatuto profissional correto, assegurar a equidade, a transparência e a responsabilização ao aplicar a gestão algorítmica e melhorar a rastreabilidade e o conhecimento dos desenvolvimentos do trabalho realizado nas plataformas.
Para o efeito, e entre outras matérias (como seja a gestão algorítmica da plataforma, as obrigações de informação sobre essa gestão junto dos profissionais ou o controlo humano dos sistemas automatizados), a Proposta adota um mecanismo de presunção de existência de contrato de trabalho, entre a plataforma e a pessoa que nela trabalha, sempre que dois ou mais dos critérios nela elencados se verifiquem.
Desta feita, os critérios (ou indícios) refletem já uma conceção sobre como a hetero-determinação da atividade (i.e. o controlo dessa atividade) se projetaria num ambiente de plataforma, a saber: fixação ou limites máximos de remuneração; imposição de regras de aparência ou conduta; supervisão ou verificação da qualidade dos resultados do trabalho; restrição à organização do trabalho nomeadamente no que toca a horários, períodos de ausência, liberdade de aceitar ou recusar serviços ou subcontratação; restrição no desenvolvimento de carteira própria de clientes ou de trabalhar para terceiros.
Em Portugal, o quadro legal do trabalho em plataformas é atualmente circunscrito no objeto, e original na solução. À data de hoje, apenas o transporte de passageiros (TVDE) está a coberto de um regime próprio (que não se aplica, por conseguinte, a outro tipo de serviços em plataforma). Por seu turno, a circunstância de a plataforma contratar com o operador de TVDE e de este ser, necessariamente, uma sociedade (originalidade nacional), traduz um obstáculo a que qualquer relação laboral direta entre motorista e plataforma possa surgir (a relação entre ambos é necessariamente intermediada pela figura do operador de TVDE).
Recorde-se no entanto que o tema do trabalho em plataforma traduz um dos dez eixos prioritários definidos pelo Governo na Agenda do Trabalho Digno, e da qual resultou uma proposta para alteração do Código do Trabalho, nela se incluindo (tal como o fez a Proposta de Diretiva) uma presunção de contrato de trabalho entre o prestador de atividade e quem opera a plataforma, quando verificadas determinadas características, pensadas e adaptadas à realidade digital.
A evolução prevista do quadro normativo parece assim apontar para que se venha a admitir que quem trabalha numa plataforma possa vir a ser qualificado como trabalhador subordinado da entidade que a gere, em função do modo e caraterísticas com que a atividade é realizada. Ainda assim, talvez seja de refletir sobre se a forma como a proteção destes profissionais vem sendo pensada será, efetivamente, a mais adequada.
Com efeito, tal proteção não é necessariamente dependente da existência ou reconhecimento de um contrato de trabalho com a entidade que gere a plataforma, podendo eventualmente bastar-se com um regime autónomo e especificamente pensado para o efeito (que reflita a natureza peculiar deste tipo de atividade).
E ainda que estes profissionais venham a ser trabalhadores subordinados, a aplicação do regime geral laboral – mesmo que com as necessárias adaptações – constituirá um desafio quando deixada a cargo de empresas e particulares: se a inadequação das características tradicionais do contrato de trabalho ao mundo das plataformas vai ao ponto de exigir um total reequacionar destas últimas, e se o regime legal existente foi pensado em função de uma noção de contrato de trabalho assente nessas mesmas características, não seria de equacionar, pelo menos, a aprovação de um regime laboral especial? O tempo o dirá.