Este artigo foi escrito em co-autoria por Francisco Granja de Almeida, Associado na Vieira de Almeida e Ana Santos Duarte, Estagiária na Vieira de Almeida.
A persistência de formas modernas de escravatura e de tráfico humano na atividade de algumas empresas (especialmente, as transnacionais, cujas cadeias de valor atravessam continentes numa lógica de produção fragmentada) levou a Organização das Nações Unidas (doravante, “ONU”) a expandir formalmente a responsabilidade de proteger os Direitos Humanos a todas as empresas, de qualquer tamanho, geografia ou setor. Assim, afastando-se de uma visão clássica do Direito Internacional dos Direitos Humanos centrada nas obrigações do Estado, a ONU espoletou um movimento legislativo à escala global com vista à criação de regras sobre conduta empresarial diligente nesta matéria – com o objetivo de prevenir impactos nocivos nos Direitos Humanos.
No cerne do dever de diligência devida (due diligence, em língua inglesa), isto é, a obrigação que incumbe a uma empresa de tomar todas as medidas proporcionadas e adequadas e de envidar todos os esforços ao seu alcance para evitar efeitos nefastos nos Direitos Humanos nas suas cadeias de valor (bem como, de corrigir esses efeitos negativos sempre que estes ocorram), está um processo contínuo e dinâmico de due diligence, de natureza fundamentalmente preventiva, centrado na avaliação e mitigação de riscos.
Na Europa, o Reino Unido, a França e a Alemanha já aprovaram legislação que obriga determinadas empresas a executarem partes deste processo de due diligence. Na senda deste movimento legislativo, a 23 de fevereiro de 2022 também a Comissão Europeia aprovou uma proposta de Diretiva sobre o dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade (doravante, “Proposta de Diretiva”). Esta Proposta de Diretiva surge, então, num contexto onde o setor empresarial anseia por uma homogeneização, ao nível da União Europeia (doravante, “UE”), das obrigações nesta matéria[1]. Em suma, a proposta mencionada pretende que as grandes empresas da UE e de países terceiros:
i) Integrem o dever de diligência nas suas estratégias;
ii) Identifiquem impactos adversos reais ou potenciais nos Direitos Humanos e no Ambiente;
iii) Previnam ou atenuem potenciais impactos;
iv) Ponham termo aos impactos reais ou minimizem-nos;
v) Estabeleçam e mantenham um procedimento de reclamação;
vi) Controlem a eficácia da estratégia e das medidas em matéria de dever de diligência; e,
vii) Comuniquem a informação relevante resultante deste processo.
Estes procedimentos correspondem à cristalização das recomendações presentes nos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos e nas Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais e implicam que as empresas realizem uma gestão dinâmica e contínua da sua sustentabilidade, como referido acima.
A questão que impende é – como? Na prática, como é que uma empresa poderá monitorizar a sua cadeia de valor – desde a recolha da matéria prima à venda do produto final – intersetando as suas filiais, subcontratadas e fornecedores, de forma a garantir que não interfere, direta ou indiretamente, em violações dos Direitos Humanos?
A empresa deve implementar o dito processo de due diligence e é precisamente na implementação prática deste processo que o recurso à Blockchain poderá ser uma mais valia para as empresas. Em suma, esta tecnologia permite, de entre outras funcionalidades, o registo, armazenamento e rastreamento ininterrupto e permanente de informação que, uma vez inserida, não poderá ser modificada. Desta forma, e combinando esta tecnologia com outras já existentes e bem conhecidas por todos, como é o caso do GPS, através da Blockchain as empresas podem acompanhar o processo de produção e criação dos seus bens e serviços e elaborar relatórios com a informação inserida nos diversos pontos da cadeia de valor. Esta rede tem o potencial de permitir que, por exemplo, um produtor de frutos vermelhos no Alentejo insira informações sobre o impacto ambiental e social daquela produção (nomeadamente, se existiu ou não recurso a produtos químicos ou agências de trabalho temporário no cultivo e apanha dos frutos), para que um consumidor final em Espanha possa consultar estes dados “lendo” apenas um QR Code.
A Blockchain é já empregue para esta finalidade em inúmeras situações. Destacamos a sua utilização no setor mineiro[2], nomeadamente o caso de uma empresa alemã que criou uma blockchain-based traceability platform, que permite, às empresas deste setor, reter e comunicar informações sobre a sua cadeia de valor, em matéria de sustentabilidade. Este recurso à Blockchain no setor mencionado é de especial relevância uma vez que a 1 de janeiro de 2021 entrou em vigor o Regulamento (UE) 2017/821, aprovado em maio de 2017 pela União Europeia, que visa assegurar que as empresas da UE importam estanho, tungsténio, tântalo e ouro apenas de fontes responsáveis e livres de conflitos armados. Para tal, estes importadores deverão implementar processos de diligência devida de modo a identificarem e monitorizarem as cadeias de fornecimento.
A indústria chocolateira também tem demonstrado como a Blockchain pode ser uma aliada na monitorização das cadeias de valor. Considerando que cerca de 2.3 milhões de crianças trabalham nos campos de produção de cacau no Gana e na Costa do Marfim, uma chocolateira holandesa – a Tony’s Chocolonely – criou uma plataforma da cadeia de valor, chamada Beantracker, que regista a jornada do cacau from bean to bar, incluindo uma ferramenta de monitorização que permite localizar os grãos de cacau nos diferentes agentes da cadeia de fornecimento. A utilização desta tecnologia com o objetivo de erradicar formas modernas de escravatura das cadeias de valor da produção do chocolate, chamou a atenção da Accenture que codesenvolveu e alavancou iniciativas de Blockchain neste contexto. Mais notamos que a Proposta de Diretiva da UE estabelece que a agricultura, o fabrico de produtos alimentares e comércio grossista de alimentos são considerados “setores de elevado impacto”, nos termos da alínea b) do número 1 do Artigo 2.º.
Uma das grandes potenciais vantagens da utilização desta ferramenta (para além de poder diminuir os custos da rastreabilidade) é o facto de permitir uma maior transparência e monitorização mais eficaz da cadeia de valor de uma empresa, agilizando assim o processo contínuo de diligência devida em matéria de Direitos Humanos e Ambiente. Desta forma, o armazenamento de dados de forma imutável tem o potencial de permitir que, internamente, a administração da empresa tenha acesso a informação instantânea e, da mesma forma, a capacidade de possibilitar aos seus stakeholders a verificação da origem e recursos utilizados na produção de determinado produto.
Apesar de poder ser uma ferramenta útil na implementação e monitorização do processo de diligência devida em matéria de Direitos Humanos e Ambiente, cumpre notar que a Blockchain não parece assegurar que os dados sejam verdadeiros no momento em que estes são inseridos na rede, uma vez que esta apenas permite que as informações já registadas não sejam manipuladas. Cria-se assim um risco de que sejam inseridos dados incorretos ou que sejam omitidas referências a impactos adversos causados ou relacionados com a atividade da empresa. Mais ainda, a inserção de informação relativa à atividade, condições de vida e identidade dos trabalhadores não deve comprometer a sua privacidade nem as obrigações de compliance da empresa em matéria de proteção de dados.
Concluindo, aliada à verificação robusta da qualidade e veracidade da informação inserida e ao compliance em matéria de proteção de dados pessoais, tudo indica que a Blockchain é uma resposta a considerar na gestão de risco das cadeias de valor, em matéria de Direitos Humanos e Ambiente.
[1] Cfr. Business & Human Rights Resource Centre, More than 100 companies and investors call for effective EU corporate accountability legislation, 8 de fevereiro de 2022. Disponível em: More than 100 companies and investors call for effective EU corporate accountability legislation – Business & Human Rights Resource Centre (business-humanrights.org).
[2] Cf. Jax Jacobsen, Can blockchain apps ensure a responsible mineral supply chain? In Forbes, 22 de março de 2019. Disponível em: Can blockchain apps ensure a responsible mineral supply chain? (forbes.com).