Este artigo foi escrito em co-autoria por Filipa Cotta, Teresa Pitôrra, Roberto Ornelas Monteiro, respetivamente, Sócia Responsável da Área, Senior Adviser e Associado de Reestruturação e Insolvência na Vieira de Almeida.
Os processos de reestruturação e insolvência em Portugal (“R&I”) conheceram um crescimento exponencial entre 2008 e 2014, tendo passado de 5.004 processos iniciados a 23.286, respetivamente (cf. estatísticas da Direção-Geral da Política de Justiça). Após 2014, em paralelo com a recuperação da economia portuguesa da crise de 2010-2014, esta tendência foi revertida, tendo, no entanto, os R&I se mantido em números bastante superiores aos do período pré-crise.
Durante esse período, o legislador nacional empreendeu um esforço considerável para melhorar a qualidade da legislação relativa aos R&I, tendo, por exemplo, em 2012 criado o Processo Especial de Revitalização (“PER”), que visa a restruturação preventiva de empresas que apesar de se encontrarem numa situação económica difícil ainda são suscetíveis de recuperação. O legislador português continuou de forma sucessiva e consentânea com o direito europeu, a proceder a alterações e reformas legislativas, tendo mais recentemente, em 11 de janeiro de 2022 com a promulgação da Lei n.º 9/2022, transposto para a ordem jurídica nacional a Diretiva EU 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (a “Diretiva”), cujo objetivo é, inter alia, aumentar a eficiência dos R&I.
Apesar de Portugal ter atualmente uma legislação adequada, sendo classificado, em 2020, na posição 15.ª num total de 30 países na rubrica Resolving Insolvency pela Doing Bussiness e recebido a pontuação 14,5 na rúbrica Strength of insolvency Framework Index (numa classificação de 0-16, tendo ficado acima da média da União Europeia de 11,9), os R&I continuam a apresentar determinados problemas estruturais, como, nomeadamente a morosidade dos mesmos nos tribunais, a reduzida taxa média de recuperação e a falta de transparência e de fiscalização da atividade dos administradores de insolvência (“AI”). Com efeito, na rúbrica da taxa de recuperabilidade, Portugal recebeu uma pontuação bastante abaixo da média da União Europeia e o tempo médio dos processos de R&I em Portugal é de 3 anos em contraste com a média europeia de 1,7 anos.
Os números acima referidos demonstram um claro contraste entre a qualidade da legislação portuguesa e os resultados obtidos em termos de recuperabilidade. Esta contradição pode ser, em parte, explicada, pelo facto de, por um lado, a legislação em matéria de R&I ter sido sucessivamente atualizada, por outro, no que respeita à utilização de meios eletrónicos na tramitação dos R&I, a situação continuar praticamente inalterada.
Os R&I decorrem na plataforma CITIUS (criada em 2008), não existindo nenhuma plataforma específica de comunicação entre os AI, o devedor e os credores, onde sejam disponibilizadas e possam ser consultadas, de forma estruturada e user-friendly,as informações relevantes. Tal contribui, em grande medida, para uma burocratização dos R&I e consequente morosidade dos mesmos. Por outro lado, a não utilização de mecanismos de alerta precoce (early warning tools) em Portugal é outro fator que determina a baixa recuperabilidade dos R&I.
No atual contexto de início de execução do Plano de Recuperação e Resiliência (“PRR”), que tem com um dos seus principais pilares a Transição Digital, em particular no campo da Justiça Económica e Ambiente de Negócios, [melhorar] a “eficiência na justiça e melhoria das condições de contexto […] para melhorar o ambiente empresarial propício ao investimento […]” e “[…] aumentar a eficiência dos processos de insolvência e recuperação e garantir a execução mais rápida das garantias dos empréstimos não produtivos”, é importante perceber e refletir de que forma a utilização dos mecanismos de alerta precoce e a digitalização dos R&I seriam relevantes para o aumento da eficiência dos mesmos.
A. Os Mecanismos de Alerta Precoce (“MAP”)
O MAP que estava previsto na Diretiva, foi criado em 2019, no âmbito do Programa Capitalizar (cf. Resolução do Conselho de Ministros n.º 42/2016). No entanto, apenas está disponível para as empresas desde janeiro de 2022.
O MAP consiste num mecanismo que permite a prestação de informação económica e financeira aos membros dos órgãos de administração de empresas não financeiras com sede em Portugal, numa base anual, constituindo uma ferramenta de apoio à decisão e gestão empresarial. O MAP resulta da intervenção de várias entidades, nomeadamente o Banco de Portugal (“BdP”), em articulação com o Instituto Nacional de Estatística (“INE”), que disponibiliza à Agência para a Competitividade e Inovação (“IAPMEI”) os dados estatísticos relevantes, sendo o IAPMEI responsável por analisar a situação financeira das empresas e disponibilizar essa informação às empresas.
Dado o caráter recente do MAP em Portugal, ainda não é possível aferir da eficácia deste mecanismo e do seu real contributo para o aumento da recuperabilidade. No entanto, face as características do mesmo, já é possível antever algumas das suas fragilidades:
–Falta de follow up: O MAP, apesar de proporcionar um diagnóstico financeiro à empresa, não propõem qualquer medida de reação nem proporciona qualquer acompanhamento/aconselhamento às empresas.
–A desatualização da informação financeira: o diagnóstico financeiro disponibilizado pelo MAP respeita a informação do exercício fiscal anterior, o que pode comprometer a qualidade da análise e a capacidade das empresas para reagir. As empresas depositam as suas informações fiscais junto da Autoridade Tributária (“AT”), até junho, sendo que o BdP demora até novembro a enviar os rácios financeiros para o IAPMEI, que, por sua vez, disponibiliza o diagnóstico financeiro com as empresas em janeiro do ano seguinte.
–Falta de colaboração entre instituições: Em Portugal, não existe cooperação entre a AT, a Segurança Social (“SS”), os tribunais do comércio e os AI. A título de exemplo, a existência de planos de pagamento entre as empresas e a AT/SS, um forte indício de uma situação económica difícil, deviam ser levados em conta no diagnóstico do MAP.
Os aspetos acima elencados aliados ao facto de em Portugal não existir um ambiente propício à reestruturação – pelo contrário, existe ainda um risco reputacional para empresas que recorrem à reestruturação – e estando ainda, de forma algo questionável, o dever de apresentação à insolvência suspenso (dever de os membros dos órgãos de administração das empresas se apresentarem à insolvência no prazo 30 dias a contar da data em que tiveram conhecimento da situação de insolvência), poderão determinar que as empresas não venham a fazer um uso adequado do diagnóstico financeiro disponibilizado pelo MAP, adotando as medidas necessárias em tempo útil. A criação de uma estrutura de apoio e aconselhamento, de forma gratuita, às empresas, a disponibilização do diagnóstico financeiro do MAP ainda no exercício a que a informação financeira respeita e ainda a obrigação das empresas de submeterem o diagnóstico financeiro do MAP aos seus auditores e órgãos de fiscalização e de adotarem planos de reação em situações de dificuldade económica, seriam medidas que, seguramente, iriam aumentar a eficiência do MAP, beneficiando a capacidade de recuperabilidade dos R&I.
B. A Digitalização dos Processos de Reestruturação e Insolvência em Portugal (“R&I”)
Em Portugal não existe uma plataforma de comunicação entre as partes nos R&I, estando a informação relevante dos processos apenas disponível na plataforma Citius, que funciona como um mero repositório de informação, que não permite uma consulta adequada da mesma. A mero título de exemplo, atente-se a como funciona a fase de reclamação de créditos nos R&I: não existindo um formulário padrão a que os credores possam recorrer, têm de elaborar as suas reclamações de crédito (tipicamente recorrendo a advogados), tendo, posteriormente, os AI que receber, analisar e processar essa informação, produzindo uma lista provisória de credores (que muitas vezes chega a largas dezenas de páginas). Para este processo não existe nenhuma plataforma disponível para os AI, tendo os mesmos tipicamente que recorrer aos programas Word ou Excel e ainda que converter os documentos em PDF para submissão via CITIUS.
Com vista a melhorar a gestão digital dos R&I, a Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça (“CAAJ”), entidade responsável pelo acompanhamento, fiscalização e disciplina dos auxiliares de justiça, encontra-se a desenvolver o Sistema de Tramitação Eletrónica do Processo de Insolvência (“STEPI+”), uma plataforma digital que permite a tramitação eletrónica dos R&I, a comunicação entre as partes e a disponibilização estruturada de informação acessível por todas as partes.
O STEPI+ visa, entre outros objetivos, as seguintes melhorias dos R&I:
-Automatização e eliminação de tarefas burocráticas sem valor acrescentado;
-Automatização dos procedimentos de recolha e tratamento de dados, e produção de dados estatísticos;
-Interoperabilidade com outras plataformas de forma a permitir a recolha, análise e tratamento de informações;
-Simplificação das notificações e comunicações entre as partes nos R&I;
-Potencialização da fiscalização da atividade dos AI por parte da CAAJ.
A implementação do STEPI+ nos termos em que se encontra projetado e, acima sumariamente descrito, será um contributo muito positivo na forma como são geridos os R&I, sendo, certamente bem recebido por todos os atores dos R&I e possibilitará a melhoria da celeridade, eficiência e transparência dos R&I. Em conclusão, e numa análise geral, a utilização eficiente dos MAP e a digitalização dos R&I através da implementação do STPEI+, ferramentas que não são, de nenhuma forma, state-of-the-art tecnológico, irão seguramente determinar uma melhoria do panorama geral dos R&I, aumentando a capacidade de recuperabilidade das empresas portuguesas. Necessidade essa, que no momento atual de grande incerteza e instabilidade económica a nível global, são fundamentais para o dinamismo e competitividade da economia portuguesa.