Este artigo foi escrito em co-autoria por Ana Santos Duarte e Mariana Vicente, VdA.
O que é o Metaverso?
O conceito de Metaverso não se afigura de fácil explicação, nomeadamente por se tratar de uma realidade em construção e que evolui constantemente, de acordo com as inovações tecnológicas que vão surgindo. Podemos, desde já, adiantar que é uma visão do que muitos consideram ser o próximo desdobramento da Internet: um mundo virtual, tridimensional, constante e imersivo, onde as pessoas interagem através de avatares, e onde podem disfrutar de entretenimento, fazer transações comerciais e utilizar cripto ativos, bem como trabalhar sem saírem do conforto das suas casas. Na realidade, não existe apenas um Metaverso, mas sim diferentes espaços virtuais consoante as entidades que os criarem. Por exemplo, em outubro de 2021, o Facebook passou por uma fase transformacional de rebranding em que alterou a sua identidade empresarial para Meta e publicou os seus planos para investir pelo menos 10 mil milhões de dólares no conceito e desenvolvimento do seu próprio Metaverso.
Recorrendo a óculos de realidade virtual e a equipamentos de realidade aumentada – Virtual Reality e Augmented Reality – podemos experienciar o Metaverso e tudo aquilo que nos pode oferecer. Enquanto o fazemos, somos seres reais que vivenciam experiências virtuais como se fossem “verdadeiras”. É neste ponto que importa a nossa presente reflexão, sobre de que forma o Direito deverá olhar para as diferentes questões que surgem com o desenvolvimento tecnológico.
Qual a interseção entre o Metaverso e os Direitos Humanos?
Existem múltiplas dimensões jurídicas que devem ser tidas em conta numa análise ao conceito de Metaverso e na operacionalização deste, nomeadamente questões concorrenciais (dado o desenvolvimento destas tecnologias estar concentrado em empresas de Big Tech); de proteção de dados pessoais; de direito penal; e de tributação, entre muitas outras. A dimensão jurídica sobre a qual aqui nos debruçamos é a dos potenciais impactos do Metaverso nos direitos humanos de todos os que nele se “movem”.
A Organização das Nações Unidas define direitos humanos como “garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana”. Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos por via de partilharmos da condição humana, sendo independentes da nossa nacionalidade, origem nacional ou étnica, sexo, cor, religião, língua ou qualquer outro estatuto que nos distinga ou individualize. Estes compreendem diferentes direitos que vão desde os mais básicos para a existência do ser humano, como é o caso do direito à vida e à integridade física, até àqueles que complementam a nossa existência, como o direito a educação, trabalho, saúde e liberdade. Podemos, inclusive, ponderar e argumentar que todos os seres humanos têm o direito a participar no Metaverso, enquanto decorrência do nosso direito a usufruir do progresso científico e dos seus benefícios.
Neste sentido, torna-se necessário ponderar sobre a necessidade de garantir, no Metaverso, o respeito e a proteção dos direitos humanos, como acontece no “mundo real”. Embora tal questão não seja ainda consensual, com a evolução tecnológica que se avizinha e com o aumento de utilizadores nestes espaços virtuais, maiores serão as probabilidades de acontecerem factos que merecerão a tutela do Direito. Podemos, inclusive, questionar‑nos sobre como deverá o Direito reagir a uma usurpação de identidade pessoal no Metaverso ou como deverá atuar perante casos de assédio, crimes de ameaça e injúria ou até mesmo discriminação. A estas questões junta-se o facto de que estes espaços virtuais, mais cedo ou mais tarde, funcionarão como verdadeiras comunidades, onde, por exemplo, trocas comerciais serão feitas e outras tantas situações e relações jurídicas serão estabelecidas.
Para além do exposto, importa considerar que, à luz do Direito Internacional, os direitos humanos, enquanto garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões de Estados e/ou indivíduos que atentem contra a dignidade humana, apenas são vinculativos para os Estados. Tal decorre do facto de os tratados e convenções sobre direitos humanos – como a Declaração Universal dos Direitos Humanos – serem apenas ratificadas por estes. Ora, se refletirmos sobre esse facto e sobre como as empresas que desenvolvem o Metaverso não se encontram obrigadas a respeitar os direitos humanos, podemos, assim, estar perante uma oportunidade para criarem “verdadeiros” mundos, onde, dentro dos seus Metaversos, terão os seus próprios poderes legislativos, executivos e judiciários.
Parece-nos certo que a reação do Direito não poderá passar pela omissão legislativa, nem o desenvolvimento tecnológico deverá prosperar sem ter, no seu centro, o respeito pelos direitos humanos.
Qual a importância de Business & Human Rights nesta evolução tecnológica?
Os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos (comummente conhecidos como os UNGPs) são o documento primordial do movimento de Business & Human Rights. Estabelecem um conjunto de princípios para os Estados e para as empresas, que se concentram nos três seguintes pilares orientadores: o dever dos Estados de protegerem os direitos humanos; a responsabilidade das empresas de respeitarem os direitos humanos; e o acesso das vítimas a reparação efetiva. Concentrando-nos no segundo pilar, este diz respeito ao dever das empresas de: (i) evitarem causar ou contribuir para impactos adversos nos direitos humanos, através das suas próprias atividades, e abordarem esses impactos quando eles ocorrem; (ii) procurarem prevenir ou mitigar os impactos adversos que estão diretamente ligados às suas operações e aos produtos ou serviços das suas relações comerciais, mesmo que não tenham contribuído para esses mesmos impactos.
Um dos atuais desafios dos UNGPs está relacionado com a implementação do segundo pilar no setor tecnológico. Em termos práticos, este dever de respeitar os direitos humanos significa para as empresas a necessidade de criarem e manterem um processo de diligência devida (due diligence) dinâmico onde se procura identificar, prevenir, mitigar e explicar a forma como abordam os seus impactos adversos nos direitos humanos. Foi neste sentido que decidiram, em 2019, iniciar o projeto B-Tech que desenvolve orientações para empresas e decisores políticos sobre como identificar e mitigar os riscos da tecnologia nos direitos humanos. Uma das áreas de trabalho deste grupo pretende orientar os decisores políticos na aplicação de uma combinação de regulamentação, incentivos e políticas públicas que proporcionegarantias e responsabilização em matéria de direitos humanos, sem tal prejudicar o potencial das tecnologias digitais para enfrentar os desafios sociais e ecológicos futuros. Será este equilíbrio legislativo que permitirá alavancar um desenvolvimento do Metaverso que tem em consideração os direitos humanos e será nesse processo de construção legislativa que teremos de repensar o que são direitos humanos e de que forma os frameworks nacionais, regionais e internacionais deverão ser aplicados dentro destes espaços virtuais. De todas as incertezas que temos quanto ao futuro do Metaverso, podemos retirar uma grande certeza – para as empresas que desenvolvem estes espaços virtuais, o dever de respeitar deverá também significar: (i) levar a cabo avaliações de potenciais impactos, através de processos de due dilligence e elaborar medidas para mitigar estes potenciais impactos; (ii) não violar os direitos dos seus utilizadores, nomeadamente protegendo o direito à privacidade e à proteção dos seus dados pessoais, (iii) proteger os seus utilizadores dos possíveis danos provocados por outros dentro do Metaverso.