Este artigo foi escrito em co-autoria por Pedro Fontes e Rita Fraga Dornellas
Por que razão não se pode entregar medicamentos sujeitos a receita médica em casa?
Esqueçam-se as vacinas e outros fármacos com constrangimentos de transporte, armazenamento e administração. Quanto aos restantes, já existe receita médica desmaterializada na aplicação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). E existem aplicações preparadas para selecionar estafetas e farmácias, processar documentos e pagamentos. A maior parte dos comprimidos dispensa a intervenção do médico ou do farmacêutico, sobretudo no que respeita a tratamentos recorrentes. E é inquestionável a procura e necessidade de um tal serviço, desde logo por parte de doentes com mobilidade reduzida ou incapacitados.
Se as forças de mercado já antes de 2020 aguçavam o apetite por receber medicamentos em casa, a pandemia de covid-19 preparou a sociedade para essa solução. Nos dias de confinamento, as filas de estafetasn as farmácias trouxeram mais alívio do que preocupação.
Se a conveniência mandasse, seria até possível que a distribuição de medicamentos se efetuasse de forma centralizada: grandes armazéns estrategicamente localizados e regularmente abastecidos, aprovisionando as principais cidades e as províncias mais remotas, repletos de motas e carrinhas devidamente identificadas, fluindo regularmente para todos os pontos do país.
Se a necessidade existe, por que não concretizar? A resposta está na lei. Mais precisamente, no sentido da lei.
O Regime Jurídico das Farmácias de Oficina (“RJFO”) e a Portaria n.º 1427/2007 só permitem a entrega ao domicílio de medicamentos dispensados por farmácias de oficina de forma bastante condicionada. A dispensa e entrega no território nacional devem ser efetuadas por farmacêutico. E, nos locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (“MNSRM”) a entrega deve ser efetuada por técnico de farmácia ou outro profissional habilitado com formação técnico‑profissional certificada na área farmacêutica.
Por outro lado, a entrega está ainda limitada aos municípios onde a farmácia está instalada e aos municípios limítrofes. De onde decorre que o regime não consente na constituição de uma farmácia estritamente virtual.
Como o Infarmed já esclareceu, os medicamentos não podem ser entregues através de plataformas comuns de serviços de entrega ao domicílio. A entrega não é nesse caso assegurada pelas farmácias ou locais de venda de MNSRM, nem é efetuada por profissionais habilitados. Finalmente, as farmácias devem ser individualizadas no site da encomenda, e os pedidos à distância só podem ser efetuados através dos meios previstos no artigo 2.º da Portaria n.º 1427/2007, que – compreensivelmente – não incluem o recurso a tais plataformas.
O sentido da lei não é direto, mas é evidente: a entrega ao domicílio de medicamentos pode existir, mas não deve ser expressiva. Afinal, as farmácias operam na base de um alvará, circunscrito a determinada população e território, limitando a abertura de outras farmácias nas imediações. Essa restrição à concorrência, aplicada através de reserva territorial, é a contrapartida para a função pública de acesso ao medicamento e prestação de cuidados de saúde desempenhada pelos farmacêuticos.
Porque a sua função é necessária, e bastante constrangida por encargos de interesse público (pense-se, por exemplo, na apertada regulação de preços e na obrigação de dispensa de medicamentos mais baratos ao utente), o legislador quis certificar-se de que a farmácia era economicamente viável e atrativa.
A transição impetuosa para um modelo de entrega ao domicílio banalizaria essa territorialidade e o seu propósito. Na prática, lançaria à concorrência um mercado que o legislador sempre regulou e protegeu, concentrando as transações nas farmácias de grande escala, em prejuízo das farmácias de rua sem presença online.
É compreensível a resistência. No entanto, a lei serve o interesse do público e não o das farmácias.
O farmacêutico assegura a correta toma e administração de medicamentos, aconselha e instrui a população, e presta importantes serviços de saúde de proximidade, alargando a cobertura e alcance do SNS. Contudo, a era da informação permite um acesso universal, qualificado e permanente a informação de saúde, incluindo informação pessoalmente validada pelo médico ou farmacêutico. As preocupações de autenticidade ou registo da receita são facilmente ultrapassadas pelo mais simples programa informático. As vantagens para idosos, doentes com mobilidade reduzida, ou pessoas de outro modo dependentes de cuidadores parecem demasiado pertinentes para serem ignoradas.
De uma perspetiva económica, a concentração associada ao crescimento do mercado online parece convidar a aumentos de eficiência, reduções de custos e a uma gestão mais universal e racionalizada dos stocks de medicamentos, melhorando a cobertura territorial e canalizando fármacos para locais de maior escassez. Não é coincidência, de resto, que o comércio transfronteiriço de medicamentos venha sendo sucessivamente desbloqueado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, entre sugestões mais ou menos veladas de que as reservas e proibições impostas por cada Estado-Membro defendem, de forma encapotada, as farmácias nacionais, sem que daí derivem vantagens palpáveis para os consumidores ou para a saúde pública.
As farmácias têm, pois, um encontro marcado com o futuro. Conseguiram até agora adiá‑lo. Começa, porém, a ser urgente conceber um regime que colha as vantagens da tecnologia enquanto permite, do mesmo passo, o cumprimento dos deveres essenciais do farmacêutico, e compense a confiança justamente depositada pelas farmácias no amparo económico do Estado.
Como se viu com os táxis, com os restaurantes, com o retalho em geral, a alternativa não é a permanência, mas a rutura. Não se para o vento com as mãos.