Criminalidade no metaverso – necessidade de novos tipos de crime?

A questão com que nos debatemos é a aplicabilidade do nosso edifício legislativo à realidade virtual com que nos deparamos e com a qual nos iremos, cada vez mais, deparar, bem como os desafios de política criminal que tal realidade nos irá colocar.

Há muito que se reconhece que o crime constitui um fenómeno composto quer por condicionalismos externos, quer por realidades internas, individuais, sendo ambos componentes da “mais complexa de todas as realidades: a realidade humana[1]. Assim, com o desenvolvimento do Metaverso, e com a progressiva importância que a realidade virtual vem adquirindo e irá adquirir na interação humana, a tendência será para a reprodução, no “mundo virtual”, dos crimes que têm lugar no mundo real. A questão com que nos debatemos é a aplicabilidade do nosso edifício legislativo à realidade virtual com que nos deparamos e com a qual nos iremos, cada vez mais, deparar, bem como os desafios de política criminal que tal realidade nos irá colocar.

Apesar do Metaverso consubstanciar um desafio para todos os Ramos do Direito, este será particularmente complexo ao nível do Direito Penal, devido às suas especificidades, já que a natureza das sanções aplicadas neste âmbito implica a vigência de certos princípios fundamentais, como a estrita adesão ao princípio da legalidade e da tipicidade e o princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

A verdade incontornável é que nesta nova realidade – o Metaverso – têm surgido os primeiros casos de assédio, de crimes contra o património e, até mesmo, de violação, o que só vem salientar a relevância do tema em debate. Serão as leis penais suscetíveis de serem aplicadas a infrações praticadas no Metaverso? Estarão as disposições penais destinadas a proteger apenas pessoas reais e físicas ou serão elas igualmente aplicáveis a agressões protagonizadas contra avatares, que são, essencialmente, códigos de software? Terão de ser tipificadas novas realidades para fazer face às específicas exigências preventivas e punitivas do mundo virtual?

No tratamento desta questão, será necessário ter presente os princípios enformadores do Direito Penal, entre os quais se inclui o princípio da sua intervenção mínima, que impõe que o Direito Penal apenas intervenha como último recurso, caso a realidade que se pretende combater não seja eficazmente tratada por outra via. Como referido, têm surgido recentemente vários casos de assédio e, inclusivamente, de violações no Metaverso, com relatos de vítimas visivelmente afetadas pelo sucedido, sendo ainda previsível que os casos de burla e de branqueamento de capitais neste universo virtual venham a aumentar. É, assim, inegável a possibilidade de ocorrerem, no âmbito do Metaverso, situações suscetíveis de acarretar a lesão de bens jurídicos (inclusive, de bens pessoais), o que imporá que se determine a respetiva tutela.

Para o estudo da criminalidade no Metaverso, bem como das soluções a adotar, será relevante estudar os comportamentos humanos em ambientes digitais, os quais adquirem contornos diferentes por comparação ao mundo físico. Esta realidade é evidente quando assistimos ao fenómeno das redes sociais e às interações que ocorrem nesse contexto, e, por conseguinte, à evolução da criminalidade que acabou por decorrerr dessas interações. Os dados demonstram que, no contexto da internet e, em particular, das redes sociais, a criminalidade aumenta, nomeadamente os casos passíveis de configurar a prática de crimes de assédio ou de burla (o diretor da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica da Polícia Judiciária já alertou que “grande parte da criminalidade é praticada com recurso a meios informáticos”, através da internet e das redes sociais). Já o fenómeno das criptomoedas tem vindo a causar significativo aumento dos crimes de branqueamento de capitais[2].

Esta nova realidade não é um assunto perante o qual as autoridades tenham ficado indiferentes, sendo que as polícias têm vindo a preparar-se para a enfrentar. A título de exemplo, nos Emirados Árabes Unidos, o Governo lançou uma experiência de formação virtual de três dias para profissionais das forças de segurança. A Europol, por sua vez, lançou um relatório intitulado “Policing in the metaverse: what law enforcement needs to know”. No relatório, a Europol destaca que ainda não são claros nem definitivos os contornos do Metaverso, sendo uma realidade evolutiva e em permanente crescimento e renovação. No entanto, de forma comum e unívoca, todas as versões e propostas de Metaverso visam uma progressiva diluição entre o mundo real e o virtual, o que traz a questão que aqui se coloca para a ordem do dia.

Crimes contra o património

Não temos dúvidas de que a presente questão adquire maior interesse no âmbito dos crimes contra as pessoas, porquanto os efeitos provocados pelos crimes contra o património serão tendencialmente reconduzíveis a um impacto na esfera patrimonial das pessoas físicas, sendo esta uma realidade protegida pela legislação penal aplicável, cujos factos serão mais facilmente subsumíveis aos tipos incriminadores existentes. Prevê-se que o Metaverso tenha uma economia digital – muitas vezes potenciada pela utilização de tecnologias blockchain, com as transações a serem, apesar de tudo, registáveis, rastreáveis e reconduzíveis a pessoas físicas –, na qual os utilizadores poderão transacionar bens e serviços. O dinheiro e as medidas de valor podem assumir diferentes formas no Metaverso: enquanto os NFT (Non-Fungible Tokens) podem permitir a prova de propriedade de bens digitais, as transações no Metaverso podem ser facilitadas por uma série de diferentes criptomoedas, dependendo das plataformas envolvidas, e é provável que as principais moedas que conhecemos persistam como meio de entrada na economia do Metaverso. Com efeito, esta realidade terá tendência a subsumir-se mais facilmente aos crimes contra o património existentes, uma vez que a maior parte dos instrumentos utilizados já nos é familiar e tem já acolhimento legal, em particular, na lei penal. Por muito que a moeda/medida de valor roubada, furtada ou transferida não corresponda ao que usualmente denominamos “dinheiro real”, tais realidades são mais facilmente convertíveis nas unidades de valor a que estamos habituados e, sobretudo, passíveis de integração nos tipos criminais existentes. Existem já várias realidades tipificadas que poderão auxiliar no combate à criminalidade financeira no Metaverso, tais como o crime de burla informática e nas comunicações, previsto no artigo 221.º do Código Penal, ou os crimes previstos na Lei do Cibercrime, aprovada pela Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (a título de exemplo, o crime de dano relativo a programas ou outros dados informáticos, previsto no artigo 4.º da Lei do Cibercrime, espelha o crime de dano previsto no artigo 212º do Código Penal). Também os procedimentos que têm vindo a ser adotados ao nível do combate ao branqueamento de capitais serão aplicáveis e relevantes na prevenção da proliferação desse tipo de criminalidade no Metaverso. Tal fenómeno irá previsivelmente continuar a aumentar, pelo que o maior esforço exigido será ao nível dos mecanismos de prevenção e investigação. No entanto, será de notar que o desenvolvimento de novas tecnologias irá inevitavelmente gerar, no futuro, a necessidade de proteger realidades que ainda não conseguimos sequer equacionar de momento – tal foi o que se sucedeu com os crimes previstos na Lei do Cibercrime, os quais abarcam realidades previamente inimagináveis, como a utilização de malware ou de ransomware para o sequestro de dados.

Crimes contra as pessoas

A questão adquire, de facto, contornos interessantes quando em causa estão crimes contra as pessoas, desde logo, no âmbito dos crimes contra a honra. A doutrina tem entendido que, nos crimes de difamação e de injúria, o bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, numa dupla conceção, que inclui não apenas o bom nome de que a pessoa goza na comunidade, como também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social[3]. Por outro lado, tem-se entendido que o “ofendido é sempre uma pessoa física viva[4]. Bem se percebe tal entendimento, tendo em conta a conceção atual do bem jurídico protegido. Não obstante, à medida que a conceção do bem jurídico “honra” venha a evoluir, eventualmente abarcando uma dignidade que venha a ser considerada como inerente a qualquer pessoa “virtual”, bem como o bom nome de que essa pessoa virtual goze numa certa comunidade (no Metaverso), poderá começar a surgir a necessidade de se atualizarem os tipos criminais respetivos.

Quanto aos crimes contra a liberdade ou contra a autodeterminação sexual, temos assistido a uma particular incidência dos mesmos no mundo virtual, configurando o assédio online atualmente um problema significativo. No plano do Metaverso, como mencionado, temos começado a assistir a relatos de alegadas violações a ocorrerem no âmbito da realidade virtual. A Europol considera que estes fenómenos levantam várias questões quanto à aplicabilidade da lei penal vigente. Os crimes de coação sexual e de violação são considerados crimes de dano e requerem, por definição, contacto físico. Em contraponto, por definição também, os avatares serão realidades virtuais. No entanto, tendo o Metaverso como desígnio aproximar o mundo real do virtual, não será difícil imaginar uma realidade em que, à medida que a tecnologia evolua e se torne mais sofisticada, a delimitação entre o mundo físico e o virtual seja cada vez mais problemática. À medida que as experiências virtuais se tornem mais reais e tangíveis, seremos confrontados com a seguinte questão: que experiências virtuais têm, na realidade, o mesmo impacto do que as experiências físicas, e quais dessas realidades clamam pela intervenção penal? Neste contexto, será relevante acompanhar a evolução da tecnologia ao nível dos sensores e suportes tácteis, que vêm conferir à realidade virtual uma componente sensorial que não poderá ser desconsiderada. Quanto ao crime de importunação sexual, que configura um crime de perigo concreto, sem necessidade de qualquer contacto físico, a sua aplicabilidade, mutatis mutandis, à realidade do Metaverso será facilmente concebível.

Relativamente aos crimes contra a vida ou contra a integridade física, a perspetiva a adotar terá, necessariamente, de ser distinta. Terá a legislação penal de evoluir para integrar a possibilidade de punição por um crime de homicídio da “pessoa virtual”? Será a própria definição do crime de homicídio impeditiva dessa subsunção? Como se passará a diferenciar a morte ou a destruição de um avatar no Metaverso por comparação à morte de um avatar num videojogo, em que o objetivo poderá ser, a final, eliminar os avatares dos outros jogadores? O crime de ofensa à integridade física, por exemplo, visa proteger o bem jurídico da integridade física e psíquica, sendo que o tipo objetivo tem sido caracterizado como um “ataque ao corpo ou à saúde de uma outra pessoa viva[5]. Não existe, assim, qualquer possibilidade de subsumir uma qualquer ofensa a um avatar ao tipo objetivo em apreço, tal como configurado atualmente. Quanto ao crime de homicídio, a conclusão é ainda mais óbvia: o bem jurídico protegido é a vida humana, ou seja, “a vida de outra pessoa já nascida”, consistindo o tipo objetivo, exatamente, em matar uma pessoa já nascida[6]. A maior parte dos especialistas na matéria vê com dificuldade a possibilidade de punir este tipo de crime no Metaverso. Inclusivamente, os conceitos a que apelamos para considerar a morte de uma pessoa, são completamente desadequados à realidade do Metaverso: a morte corresponde à cessação irreversível das funções do tronco cerebral, encontrando-se tal conceito definido no artigo 2.º da Lei n.º 141/99, de 28 de agosto. No entanto, à medida que a barreira entre as pessoas físicas e virtuais se vai esbatendo, as soluções adotadas podem variar no futuro, não sendo impossível imaginar um cenário em que a personalidade digital adquire uma relevância tal na vida das pessoas que se justifique a criação de um tipo criminal autónomo, protetor, por exemplo, da destruição da “personalidade digital”, ao qual se subsumiria uma situação em que alguém lograva destruir ou apagar em definitivo toda a pegada virtual de uma pessoa no Metaverso. Da mesma forma, também não será inconcebível tipificar e proteger as situações em que os avatares são constrangidos por outros a praticar certos atos, dada a natureza cada vez mais tangível das experiências de realidade virtual. O mais importante, como conclui igualmente a Europol no relatório acima referido, será ter uma ideia clara sobre o que pode ser considerado comportamento criminoso no âmbito do Metaverso. Para o efeito, será porventura necessária a criação de novos tipos de crimes, que forneçam um grau de proteção adequado perante comportamentos que sejam considerados infrações com dignidade penal.


[1] Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2012, p. 18.

[2] A empresa Chainanalyisis, dedicada à análise de dados de blockchain, concluiu que um valor de cerca de 8,7 mil milhões de dólares em criptomoeda foi branqueado em 2021, um aumento de 30 % em relação aos números do ano anterior –.

[3] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, comentário ao artigo 180.º, p. 786 e comentário ao artigo 181.º, p. 795.

[4] Ibidem.

[5] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, comentário ao artigo 143.º, p. 601.

[6] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, comentário ao artigo 131.º, p. 544.

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