A (falta de) privacidade no metaverso

Os metaversos, ou a imersão das pessoas em mundos digitais através de tecnologia de realidade virtual ou mista, acrescentam um conjunto de novos perigos à privacidade.

A realidade virtual aliada à realidade aumentada, o que se vem denominando de “realidade mista”, tem, até agora, o seu expoente máximo no metaverso, um espaço digital onde, tipicamente, se entra com um avatar.

Estes avanços tecnológicos começaram por ser conhecidos entre os apreciadores de jogos digitais, área em que os desenvolvimentos têm sido muito significativos, numa tentativa de adequar a oferta à procura, composta por clientes crescentemente ávidos de maior sofisticação e que procuram encontrar semelhanças com a realidade, verdadeira ou ficcionada, nos jogos imersivos do ciberespaço. É um setor muito apelativo e deu origem a uma próspera indústria, que movimenta valores astronómicos.

Mas trata-se de um meio digital com caraterísticas que ultrapassam mais uma fronteira na perda de privacidade. Um estudo de julho de 2022, realizado por investigadores da Universidade de Berkeley e de Munique e intitulado “Exploring the Unprecedented Privacy Risks of the Metaverse”, vem mostrar com muita clareza como a réplica de uma pessoa num mundo virtual, aquilo a que os autores chamam de “telepresença virtual”, pode ser amplamente reveladora de caraterísticas, dados pessoais e preferências da pessoa replicada. Os autores conduziram uma experiência com 30 participantes que, durante 10 a 20 minutos, usando um capacete de realidade virtual e um dispositivo em cada mão, participaram num jogo do tipo “escape room”, no qual tinham de ultrapassar alguns desafios. Tudo com um aspeto muito inócuo e inocente. Os participantes iam progredindo, passando por várias fases até chegarem ao final, mas enquanto o faziam estava a ser recolhido direta e indiretamente, ou inferido, o maior número possível de dados pessoais.

A experiência consistia em aferir até que ponto eram revelados dados pessoais numa situação em que os seus titulares não teriam sequer consciência de que os estavam a produzir. O resultado, que pode ser visto em detalhe no referido estudo disponível online, evidencia a fragilidade inconsciente em que uma pessoa se coloca, revelando 25 pontos de informação simplesmente pelo movimento e voz. Refira-se que no âmbito da experiência bastavam dois pontos de informação para que o jogador “anónimo” fosse identificado: a altura e o peso. E, dos 25 pontos de informação granular recolhidos, 15 seriam suficientes para identificar qualquer indivíduo nos Estados Unidos, segundo o estudo de Rocher et al.Estimating the success of re-identifications in incomplete datasets using generative models”.

Para quem está familiarizado com o ambiente virtual e os termos aí usados, não haverá necessidade de grandes explicações. É um contexto aceite, que simplesmente existe, a par de outros contextos digitais e físicos. Para quem não está familiarizado com o tema, pode ser difícil lidar com a crescente quantidade de informação que tem circulado sobre o assunto. A explosão inicial parece coincidir com o anúncio dos Horizon Worlds, o metaverso da Meta, ex-Facebook, lançado com pompa e circunstância por Mark Zuckerberg, em outubro de 2021. Ainda que com resultados fracos, os trabalhadores estão a ser incentivados a usar a plataforma e, havendo necessidade de cortar na dimensão da empresa, muitos podem até ser dispensados. É quase certa a estranheza com que se toma conhecimento de que muitas marcas estão a instalar-se no(s) metaverso(s), que aí estão a ser abertas dependências bancárias e a ser comprados e vendidos “bens móveis e imóveis”. O hype que parecia imparável em 2021/2022 estará, no entanto, a abrandar, não sem antes ter chegado aos tribunais, que já foram chamados a pronunciar-se sobre casos nesta área. Foi o que aconteceu com o Tribunal de Nova Iorque, que dirimiu o conflito que opôs a Hermès ao artista Mason Rothschild por causa das MetaBirkins que este criou e que foram comercializadas no metaverso. Trata-se de NFTs digitais do icónico modelo Birkin daquela marca de luxo. Em janeiro de 2023, aquele tribunal pronunciou-se a favor da Hermès, numa decisão que poderá constituir um importante precedente.

No que diz respeito à privacidade no metaverso, provavelmente a principal questão poderá ter que ver com a crescente falta de consciência dos utilizadores de tecnologia sobre o facto de que a sua presença no mundo digital implica a permanente e sistemática produção de dados que tudo revelam sobre a própria pessoa. Seja participando em redes sociais ou em eventos no metaverso, adquirindo bens e serviços no mercado digital e de realidade virtual ou, simplesmente, pesquisando informação, tendo ligada a geolocalização, usando aplicações para medir dados biométricos, desbloqueando o telemóvel com a imagem da íris, fazendo pagamentos digitalmente ou qualquer outra atividade que deixa a sua marca, a pessoa expõe a sua identificação, convicções e fragilidades, dando a conhecer inúmeros aspetos da vida privada. A presença no metaverso, através de um avatar que reproduz o movimento corporal e a voz, é mais um modo de fornecer, inadvertidamente, informação pessoal.

À medida que a digitalização da vida quotidiana aumenta, são criadas e alteradas as denominadas “Politicas de Privacidade” (que dificilmente alguém conhece), incluídos longos e ineficazes disclaimers e subscritas declarações de consentimento sobre recolha e utilização de dados pessoais, fruto de uma aplicação formal do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) – instrumentos que, de facto, pouco ou nada protegem o titular dos dados.

São já muitos os estudos que abordam o tema da privacidade em contextos específicos relacionados com a realidade virtual. E vão demonstrando que os metaversos, ou a imersão em mundos digitais através de tecnologia de realidade virtual ou mista, acarretam mais um conjunto de novos perigos à já quase totalmente esvaziada privacidade. Num jogo, numa loja ou num espaço digital virtual a pessoa revela mais sobre si do que se estivesse horas ou dias a falar da sua vida privada em público, coisa que provavelmente se absteria de fazer.

A privacidade tem traçado o seu caminho na direção da irrelevância. É certo que continua a ser um direito humano fundamental reconhecido e consagrado nas mais importantes declarações de direitos internacionais e nas constituições de muitos países, onde teve o objetivo principal de garantir a preservação de uma esfera de proteção do indivíduo contra a indevida intromissão do Estado, em contextos em que os abusos de sistemas ditatoriais e devastadores o exigiam. Com a crescente digitalização da sociedade, a disseminação de tecnologia e dispositivos que recolhem dados, a sua sistemática análise e utilização, a adesão das pessoas a mecanismos e ferramentas que lhes facilitam a vida, as divertem ou lhes são impostos sem margem efetiva de escolha, esbate-se a noção de vida privada. Consequentemente, a privacidade vai passando a soundbite, a algo abstrato e etéreo, desejável, mas dispensável face ao modo como a pessoa vai sendo absorvida por tecnologia que a conhece e prevê, com níveis de precisão e abrangência humanamente impossíveis e de personalização a que dificilmente se resiste.

Entre comodidade e privacidade, a escolha não é fácil. No metaverso, por interposto avatar, já parece só uma brincadeira inofensiva, sendo pouco provável que ocorra a uma pessoa comum o quanto está a prescindir da sua privacidade por, simplesmente, estar ali.



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