Booktokers – Entre a crítica literária e a violação do direito de Autor

A moda dos booktokers está a revolucionar o mercado livreiro em Portugal. Mas será que o atual crescimento do mercado está a acontecer à custa dos direitos e interesses dos autores?

De acordo com dados recolhidos pela consultora GfK e divulgados pela APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, em 2022 assistiu-se a um aumento de 16,2% no valor do mercado livreiro, o qual se fixou nos 175 milhões de euros, ultrapassando o valor pré‑pandemia (em 2019, o valor do mercado livreiro português atingiu cerca de 154,3 milhões de euros).

Este crescimento do valor de mercado deveu-se, sobretudo, a um aumento de 12,8% no número de livros vendidos, que ascenderam em 2022 a 12 725 898 unidades. De entre este número, destacam-se os mais de quatro milhões de livros (correspondentes a 33,9%) de literatura infantojuvenil.

Ora, para este crescimento muito terão contribuído os chamados booktokers (recorde-se que, de acordo com um estudo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, durante o ano de 2020, 61% dos portugueses não leram qualquer livro impresso).

Mas o que são booktokers?

Tal como o nome indica, um neologismo importado do inglês, trata-se de uma combinação entre livro (book) ou, mais precisamente, entre pessoas que gostam de livros e o TikTok.

Vamos por partes.

O TikTok é uma rede social de origem chinesa, com mais de 1,5 mil milhões de utilizadores, que permite a partilha de vídeos curtos (com uma duração média entre 15 e 30 segundos), com cortes bruscos e repentinas mudanças de plano, normalmente acompanhados de música de fundo.

Foi precisamente no TikTok que nasceu esta trend (tendência ou moda no jargão das redes sociais) de apresentar e criticar livros, principalmente infantojuvenis – uma vez que a maioria dos utilizadores do TikTok tem menos de 24 anos.

Fazendo uma busca rápida pela expressão “booktok” nesta rede social surgem centenas de milhares de resultados, com diferentes alcances, sendo que, considerando apenas os vídeos feitos por booktokers portugueses, há vídeos a somar quase 500 mil visualizações (!).

Dentro deste universo de booktokers, e como é comum nas redes sociais, há uma multiplicidade de estilos e abordagens: desde meros hauls (vídeos a mostrar o que se comprou ou recebeu); a vídeos em que apenas se vê a capa do livro acompanhados de uma pequena explicação sobre o conteúdo e as emoções que gerou no leitor; até vídeos onde se filmam as páginas à medida que o livro vai sendo folheado, permitindo que quem está deste lado do ecrã o leia.

E é aqui que se levanta a questão relevante: estarão os booktokers, nos casos em que os seus vídeos não são autorizados, a violar direitos de terceiros?

Para podermos responder, teremos de ter em conta o conteúdo concreto de cada vídeo e a forma como este se relaciona com as normas presentes no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (doravante, “CDADC”).

Nos termos do artigo 9.º do CDADC, o direito de autor confere ao seu titular direitos de caráter patrimonial e direitos de natureza pessoal sobre determinada criação intelectual do domínio literário, científico e artístico. No exercício desses direitos patrimoniais, “o autor tem o direito exclusivo de dispor da sua obra e de fruí-la e utilizá-la, ou autorizar a sua fruição ou utilização por terceiro, total ou parcialmente”.

Sem prejuízo desta abrangente proteção, o artigo 75.º do mesmo diploma prevê e acautela as situações em que determinadas utilizações livres da obra são lícitas, mesmo sem o consentimento do autor.

Entre essas situações, contam-se a utilização de obras por bibliotecas, a utilização para efeitos educativos, a utilização para efeitos noticiosos, a utilização particular e sem fins comerciais (diretos ou indiretos), e ainda a utilização de citações ou resumos de obras para efeitos de crítica.

Fixemo-nos, então, no caso de vídeos em que se apresenta um livro e se fala sobre ele. Será que um vídeo colocado numa rede social no qual se avalia ou se analisa um livro, apelando à sua aquisição, com imagens da capa e uma breve descrição do conteúdo, se enquadra em alguma das situações do artigo 75.º do CDADC?

Socorrendo-nos, a este propósito, da definição de Manuel Frias Martins, diríamos que, por “crítica literária” pode entender-se “a produção de um discurso acerca de um texto literário individual ou da obra global de um autor, independentemente da situação de comunicação que desencadeia e/ou particulariza esse discurso”.

Sem prejuízo de a crítica literária, como qualquer género de discurso, ter os seus cânones, e não sendo este o espaço para discutir os méritos da crítica ou dos livros que desta são alvo, parece-nos pacífico afirmar que os vídeos breves em que um booktoker incentiva à leitura de determinado livro, explicando-o em traços largos e mostrando a capa ou folheando breve e rapidamente as suas páginas, constituem crítica literária, incluindo-se em princípio no elenco (das utilizações lícitas da obra) do artigo 75.º, n.º 2, do CDADC.

No entanto, e ainda que nos pareça que a qualificação como crítica literária dos vídeos dos booktokers habilite a utilização livre de excertos ou citações da obra, é relevante ter em consideração os requisitos desta mesma utilização livre. A este respeito, diz-nos o artigo 76.º, n.º 2, do CDADC, que “(…) nem a reprodução ou citação podem ser tão extensas que prejudiquem o interesse por aquelas obras”. Poder-se-á então equacionar casos em que um destes influenciadores digitais possa revelar demasiado da história num dos seus vídeos (o fim do livro ou uma mudança de enredo surpreendente, entre outros spoilers). Nestes casos, entendemos que não se poderá excluir uma eventual violação do direito de autor – avaliação que deverá, ainda assim, ser levada a cabo numa base casuística.

E nos casos em que o vídeo em causa nos permite ler páginas inteiras (e, em alguns casos, capítulos completos) de uma obra literária, sem o consentimento do titular do respetivo direito de autor?

Nestes casos – que, é importante frisar, não correspondem à maioria dos vídeos publicados pelos booktokers – parece-nos existir uma efetiva violação de direitos autorais. Com efeito, a divulgação de páginas completas de uma obra protegida por direito de autor não cabe na alçada de nenhuma das alíneas do artigo 75.º do CDADC: o intuito não é educativo, de crítica, noticioso, ou outro dos protegidos naquele artigo. Para além disso, é preciso ter em conta que o TikTok, como qualquer rede social, premeia os utilizadores com mais visualizações, partilhas e likes, o que pode impactar as receitas desses influenciadores por via de mais patrocínios. Desta forma, poderá existir, ainda que indiretamente, um fim comercial, que se repercute apenas na esfera do infrator e não na esfera do autor.

Aqui chegados, e tendo concluído que existem casos em que podemos estar perante a violação de direitos legalmente consagrados, resta-nos analisar como pode ser feita a defesa destes direitos, e de que forma podem os titulares dos direitos relevantes ser ressarcidos dos danos por si sofridos.

Por um lado, cumpre referir que o próprio TikTok, tal como acontece com outras redes sociais, prevê, nas normas de utilização da plataforma, a proibição de conteúdos que violem direitos de terceiros, incluindo o direito de autor, removendo esses conteúdos quando os identifique (um mecanismo conhecido como notice & takedown,em conformidade com o previsto no artigo 14.º da Diretiva sobre o Comércio Eletrónico).

Por outro lado, os titulares dos direitos poderão ainda recorrer aos tribunais. Neste sentido, e à parte a tutela criminal, esses titulares têm desde logo à sua disposição a possibilidade de lançarem mão de providências cautelares, nos termos do artigo 210.º-G do CDADC, em caso de violação do seu direito de autor ou de fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito de autor, de modo a pôr fim, com a maior brevidade, àquele comportamento ilícito ou a inibir qualquer violação iminente.  Note-se a este respeito que o n.º 3 do mesmo artigo prevê também que poderão ser decretadas providências contra qualquer intermediário cujos serviços estejam a ser utilizados por terceiros para violar direito de autor ou direitos conexos. In casu, poder‑se-ia, então, equacionar a requisição de providências contra o próprio TikTok. Os tribunais podem igualmente impor ao infrator medidas destinadas a inibir a continuação da infração verificada, por exemplo, por via da interdição temporária do exercício de certas atividades ou profissões (artigo 210.º-J do CDADC).

Conseguindo assim o titular do direito de autor pôr termo à violação ao seu direito, resta saber como poderá ser indemnizado pelos prejuízos que sofrer. Para o efeito, diz-nos o artigo 211.º do CDADC que “quem, com dolo ou mera culpa, violar o direito de autor de outrem, fica obrigado a indemnizar a parte lesada pelas perdas e danos resultantes da violação, devendo o tribunal, para efeitos de determinação da indemnização, atender ao lucro obtido pelo infrator, aos lucros cessantes e danos emergentes sofridos pela parte lesada e aos encargos por esta suportados com a proteção do direito de autor, bem como com a investigação e cessação da conduta lesiva do seu direito”. Para além disso, “o tribunal deve atender ainda aos danos não patrimoniais causados pela conduta do infrator, bem como às circunstâncias da infração, à gravidade da lesão sofrida e ao grau de difusão ilícita da obra ou da prestação”.

Podemos assim afirmar que, sem prejuízo do alcance da internet e das redes sociais, o titular do direito de autor continua protegido, ao abrigo da lei portuguesa.

Note-se que as obrigações do TikTok neste domínio, que atualmente se resumem no essencial ao mecanismo de Takedown, serão mais exigentes no futuro, na medida em que com o já famoso artigo 17.º da nova Diretiva (UE) 2019/790, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital (que se encontra em fase de transposição em Portugal), os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha (OCSSPs, na sigla em inglês), entre eles o TikTok, terão de adotar uma conduta mais proativa na proteção dos direitos relevantes (devendo, desde logo, obter autorização dos titulares de direitos ou, na ausência desta, demonstrar que a sua conduta preenche as condições necessárias para que não sejam considerados responsáveis). Assim, em conclusão, e embora o surgimento dos booktokers possa, à primeira vista, parecer um fenómeno positivo para todas as partes, é importante estar atento, saber “separar o trigo do joio”e garantir o respeito pelos direitos relevantes e respetivos titulares, de modo que o mercado livreiro possa continuar a florescer dentro da legalidade.

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