Hidrogénio e Mobilidade: O Caso Paradigmático Das Frotas de Autocarros

Depois do boom dos veículos elétricos, vários países estão a apostar no hidrogénio verde como o combustível do futuro. Em Portugal, o hidrogénio entrou formalmente na agenda política da transição energética e, no curto prazo, poderá começar a ganhar terreno na área da mobilidade urbana, impulsionado sobretudo pela indústria nacional de construtores de autocarros. Para quem ainda não sabe, Portugal é tecnologicamente pioneiro na produção de autocarros movidos a hidrogénio, mas, nas nossas cidades, ainda não os vemos a circular. O que será que nos falta?

This article was written in co-authorship by Inês Perestrello, Managing Associate at Vieira de Almeida, and by Maria Gorjão Henriques, Associate at Vieira de Almeida.


As metas ambiciosas que, no quadro dos compromissos europeus e internacionais, Portugal assumiu para os horizontes de 2030 e 2050 estão a obrigar a repensar os sistemas de transportes urbanos das nossas cidades e a estimular a utilização de vetores energéticos verdes que, em substituição dos combustíveis fósseis, contribuam para a aceleração da descarbonização da mobilidade urbana.

Neste contexto, Portugal tem vindo a introduzir, nas suas cidades, autocarros cada vez menos poluentes e novas soluções de mobilidade elétrica. Mas, uma outra alternativa inovadora, verde, eficiente e replicável — e que permitiria, desde logo, contornar uma das limitações mais apontadas às baterias elétricas: a sua reduzida autonomia — tem surgido como uma possibilidade aliciante e competitiva: os autocarros movidos a hidrogénio.

Na verdade, esta alternativa está já em vias de se tornar uma realidade no curto prazo: efetivamente, Portugal já conta com algumas empresas e parceiros internacionais —do setor dos transportes e tecnológico — que o tornaram um país pioneiro na produção de autocarros movidos a hidrogénio.

No entanto, ainda não vemos estes autocarros “made in Portugal” a circular nas nossas cidades.

Qual é, afinal, o nosso problema? O que será que nos falta para passarmos a dispor, em Portugal, de uma frota de autocarros urbanos “powered by” hidrogénio verde?.

A DESCARBONIZAÇÃO DOS TRANSPORTES NA CIDADE

A nível mundial, os transportes terrestres são atualmente responsáveis por cerca de 25% da poluição atmosférica, tornando-se cada vez mais óbvio que só poderão contribuir verdadeiramente para a descarbonização se passarem a ser alimentados com energia produzida a partir de fontes renováveis.

A eletricidade verde é uma parte importante desta solução, nomeadamente através da implementação de soluções de mobilidade elétrica nas cidades e do estímulo à utilização de veículos elétricos.

Com efeito, já vemos vários autocarros híbridos, plug-in ou 100% elétricos em circulação nas nossas cidades, alicerçados numa rede de postos de carregamento que tem vindo a crescer substancialmente nos últimos anos.

Aliás, esta solução já surge muitas vezes contemplada nos cadernos de encargos dos processos de aquisição de novos autocarros, e tem vindo a ser incentivada, até de um ponto de vista fiscal, através de várias medidas no Orçamento de Estado.

A mobilidade elétrica apresenta, porém, diversos desafios difíceis de contornar, pelo menos no curto prazo: desde a disponibilidade e capacidade técnica dos postos de abastecimento, à velocidade do abastecimento e, sobretudo, à autonomia que constitui ainda um verdadeiro obstáculo à sua utilização em percursos longos.

O hidrogénio verde surge então como uma solução promissora — já que apresenta muitas vantagens e complementa algumas das lacunas da mobilidade elétrica — com um enorme potencial para acelerar a penetração das renováveis em larga escala no setor dos transportes, devendo e podendo conviver com a eletricidade nos sistemas de transportes urbanos das cidades do futuro.

A SOLUÇÃO DA MOBILIDADE A HIDROGÉNIO

O hidrogénio verde dispensa apresentações e, como já todos sabemos, apesar das muitas críticas que tem suscitado, parece ser “A” solução apresentada pelo atual Governo para a descarbonização transversal de vários setores da nossa economia, mas sobretudo dos transportes, indústria e energia.

E, de facto, Portugal tem procurado ser pioneiro na contribuição para a descarbonização do setor dos transportes através do hidrogénio: recordemo-nos que já em 2004 circulavam nas ruas do Porto os “H2Bus”.

Nesse ano, o Sistema de Transportes Coletivos do Porto investiu 4 milhões de euros, comparticipados por fundos comunitários, na aquisição de três autocarros protótipos movidos a hidrogénio, no âmbito de um projeto-piloto europeu desenvolvido em cidades como Barcelona, Amesterdão, Hamburgo, Londres, Estocolmo ou Madrid.

No entanto, e por problemas de performance, este projeto-piloto acabou por ser abandonado, uma vez que a velocidade comercial atingida por aqueles autocarros rondava apenas os 9,5 km/hora.

Esse problema foi entretanto totalmente ultrapassado por uma empresa portuguesa — a Caetano Bus, com sede em Vila Nova de Gaia — que, em 2019, lançou o seu primeiro autocarro elétrico convertido a hidrogénioH2.City Gold — com fuel cells da Toyota, tornando-se a primeira empresa da Europa a usar esta tecnologia de pilha e a disponibilizar um veículo pesado de transporte de passageiros com uma autonomia de 400 km.

A sua grande vantagem, face aos autocarros elétricos a bateria, está precisamente na maior autonomia, mas também na rapidez com que se pode atestar os tanques de hidrogénio (aproximadamente 5 a 10 minutos).

E, embora se assemelhe a ficção, em vez de dióxido de carbono e outros gases poluentes — a cuja presença nociva, infelizmente, já nos acostumámos nas nossas cidades —, dos tubos de escape destes autocarros “made-in” Portugal, sai apenas água potável.

Ora, dispondo nós de uma solução tão eficiente, verde e promissora, por que razão não vemos ainda, a circular nas nossas cidades, estes autocarros movidos a hidrogénio?

O PROBLEMA DO OVO E DA GALINHA

Afinal, apesar de já terem decorrido mais de 15 anos sobre o projeto-piloto do Porto, outros problemas técnicos subsistem: os autocarros existem, mas o hidrogénio verde para os mover (ainda) não.

Sendo embora um dos elementos químicos mais comuns no nosso planeta, o hidrogénio surge quase sempre na forma combinada com outros elementos químicos (como o oxigénio ou o carbono). Isto significa que é necessário produzi-lo, por recurso a processos que o dissociem dos compostos onde habitualmente surge (um dos quais é a eletrólise da água), processos, estes, que consomem, por sua vez, uma significativa quantidade de energia.

Atualmente, a maioria do hidrogénio é produzido a partir da reformação do metano sem captura e armazenamento de carbono (“hidrogénio cinzento”) ou da gaseificação do carvão (“hidrogénio castanho”).

No entanto, face ao objetivo da descarbonização, a energia utilizada para produzir hidrogénio terá necessariamente de passar a ser obtida a partir de fontes renováveis. Só assim se obterá o tão desejado e percursor “hidrogénio verde”.

Ora, o problema é o seguinte: muito embora esteja bem posicionado em termos de geração de energia através de fontes renováveis e tenha aprovado, em Conselho de Ministros (julho de 2020), a Estratégia Nacional para o Hidrogénio — que aposta na criação de uma indústria nacional de produção de hidrogénio verde —, Portugal ainda não produz, à data, hidrogénio verde.

À falta de produção associa-se, naturalmente, a inexistência da restante cadeia de valor do hidrogénio verde: a receção, armazenamento, transporte e distribuição deste novo gás.

E, em consequência, também não existem, no nosso país, quaisquer postos de abastecimento que permitam alimentar a tão promissora e desejada frota de autocarros movidos a hidrogénio.

Assim, as poucas unidades que circulam atualmente em Portugal ainda são movidas a hidrogénio azul (produzido a partir da reformação do metano com captura e armazenamento do carbono) e, para serem reabastecidos, estes autocarros “made in” Portugal têm de percorrer milhares de quilómetros até Espanha, perto de Barcelona, o que impossibilita a sua introdução nos sistemas de transportes urbanos nacionais e comporta avultados custos para a produtora.

Portugal está, portanto, refém do problema do ovo e da galinha: por um lado, nos concursos para compra de autocarros, as empresas de transportes públicos urbanos não incluem nos seus cadernos de encargos veículos a hidrogénio porque não há postos de abastecimento; por outro, ninguém instala postos de abastecimento porque não há produção de hidrogénio.

E, se no próprio território onde são fabricados, a ausência de uma rede de postos de abastecimento de hidrogénio verde impede ainda a sua utilização e massificação nas cidades, outros países mais avançados nesta matéria — como a Alemanha, Espanha, França e Arábia Saudita — já estão a utilizar estes autocarros portugueses nas suas redes de transportes públicos urbanos.

Na realidade, já existem 180 postos de abastecimento por toda a Europa e, na Alemanha, todas as grandes cidades têm uma estação a hidrogénio.

Em Portugal, a utilização do hidrogénio para alavancar e alcançar a descarbonização dos transportes está dependente da construção — ou total reformulação — de uma cadeia de valor, que permitirá a adaptação das infraestruturas existentes, ainda não preparadas para receber e consumir hidrogénio.

Esta transformação corresponderá a uma verdadeira revolução industrial imposta por medidas governamentais e, tal como apontam os maiores críticos da introdução do hidrogénio no nosso país, implicará um investimento muitíssimo avultado, numa altura em que ainda não parece existir uma boa visibilidade sobre os resultados alcançáveis.

No que diz respeito especificamente ao setor dos transportes, essa transformação será, no entanto, menos radical do que nas outras indústrias, uma vez que a capacidade de receção e o recetor final deste gás — os veículos — já existem.

A SOLUÇÃO

Apesar da pandemia ter atingido, de forma avassaladora, a indústria de produção de autocarros, com o encerramento das fábricas, a suspensão das linhas de produção e o cancelamento de muitas encomendas, 2020 revelou-se um ano foi muito promissor para a resolução “do outro lado do problema”: o da inexistência da cadeia de valor que viabilize, no curto ou médio prazo, a transição para frotas de autocarros movidos a hidrogénio.

Em julho do ano passado, terminou a consulta pública da Estratégia Nacional para o Hidrogénio que culminou na aprovação da versão final daquele documento já em julho, e numa call para a apresentação de manifestações de interesse relacionadas com o desenvolvimento de projetos de hidrogénio, ao abrigo do “Important Project of Common European Interest”, no âmbito da qual foram entretanto recebidas 74 manifestações de interesse relacionadas com projetos de investimento na fileira industrial do hidrogénio, 37 das quais já foram pré-admitidas.

Entre elas, destacam-se diversos projetos de produção de hidrogénio verde com recurso às mais variadas fontes de energia, bem como um conjunto relevante de projetos na área da mobilidade, incluindo uma parceria entre a CP, a Caetano Bus e a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto para o desenvolvimento de um projeto relacionado com a descarbonização do transporte ferroviário de passageiros (o “H2Rail”), e uma parceria entre a Caetano Bus e a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto com vista à produção descentralizada de hidrogénio aplicada à mobilidade.

Já no início deste ano avançou, por sua vez, o primeiro projeto-piloto relacionado com o transporte e distribuição de hidrogénio, que pretende testar a injeção de uma percentagem de hidrogénio verde na rede de gás natural do Seixal e construir um gasoduto de 1,4 km que transportará 100% de hidrogénio verde — o Green Pipeline Project, liderado pela Galp Gás Natural Distribuição em pareceria com várias empresas.

E outros passos relevantes nesta matéria foram dados pela Dourogás, que já se encontra a produzir hidrogénio a partir de biometano, numa central de valorização orgânica localizada no Nordeste Transmontano, tendo ainda anunciado o desenvolvimento de um projeto semelhante em Lisboa.

Quando ao abastecimento de hidrogénio, também parecem existir alguns sinais de mobilização: a Caetano Bus já anunciou a sua proposta de abertura de um posto de abastecimento de veículos a hidrogénio, ainda no ano de 2021, em Ovar. O abastecimento será feito através de um mecanismo de produção e autoconsumo de hidrogénio verde, através da instalação de painéis fotovoltaicos nas fábricas, cuja energia produzirá o hidrogénio a utilizar no abastecimento dos autocarros.

De igual modo, a Dourogás anunciou ter assinado, este ano, um contrato com a Agência Nacional de Inovação com vista à instalação dos primeiros postos de abastecimento de hidrogénio para veículos ligeiros e pesados, sendo expectável a sua concretização entre o final deste ano e o início do próximo.

Estamos, assim, a assistir, nos setores elétrico e do gás, a um verdadeiro boom de projetos inovadores — acompanhado de uma torrente legislativa de cariz transformador — que poderá colocar Portugal na linha da frente em matéria de descarbonização.

No setor elétrico, alterou-se o procedimento de licenciamento nas renováveis, abrindo-se, assim, a porta aos projetos híbridos (isto é, os que utilizam duas fontes renováveis) e à promoção de procedimentos concorrenciais para atribuição de capacidade solar, com possibilidade de armazenamento da eletricidade produzida, viabilizando, assim, a produção do “hidrogénio verde”.

No entanto, a grande transformação está a acontecer no setor do gás, compublicação do Decreto-Lei n.º 62/2020, de 28 de agosto, que veio alterar significativamente o Sistema Nacional de Gás, tornado possível — ainda que sujeito às limitações técnicas e físicas atuais — a injeção de gases renováveis e gases com baixo teor carbónico, como o hidrogénio e o biometano.

Portugal conta agora com um verdadeiro enquadramento legal para promover e acelerar a criação da cadeia de valor subjacente ao hidrogénio, conferindo aos promotores um suporte mais robusto para a apresentação e desenvolvimento de projetos relevantes nesta matéria.

Quanto ao problema do ovo e da galinha — paradoxo que desde a Antiguidade Grega tem procurado descrever o problema da determinação da ordem causal (causa e efeito) —, a física quântica tem ajudado a demonstrar que, em algumas situações, ambos os eventos podem acontecer sem uma ordem causal definida, ou seja, serem simultaneamente a causa e o efeito do outro. Portanto, Portugal, com alguma aleatoriedade, tinha de começar por algum lado…

Começámos pela produção dos autocarros movidos a hidrogénio.

Picture of Inês Perestrello

Inês Perestrello

Associada Coordenadora | Vieira de Almeida
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