A cidade e as regras
O futuro das cidades e o passaporte sanitário não parecem, à partida, ligados. A partida engana. É precisamente no mundo cosmopolita e aberto que o passaporte se discute.
É natural que seja assim. As cidades são lugares de encontro, de tráfego, de fluxo e de concorrência. Lugares de “business”, essa perfeita síntese inglesa para a ocupação produtiva do tempo.
A imagem da cidade é então a multidão, e é a multidão que faz a cidade. É ela a razão para que dois terços de todo crescimento económico aconteça em cidades. É por causa da multidão que Scott Galloway ordena aos jovens que se mudem para uma cidade antes dos 30: além da óbvia oportunidade de ganhar mais dinheiro, estar numa cidade obriga-nos a jogar o nosso melhor jogo, e a conviver e a competir com os melhores jogadores, num câmbio virtuoso de crescimento e aperfeiçoamento.
Mas o jogo, para funcionar, precisa de dinâmica e movimento, de suplentes prontos para entrar e titulares em risco de sair. Se não circular, a multidão estagna, isola-se, consolida-se, e converte-se progressivamente no êmbolo da sua trombose económica e cultural. Era essa a convicção dos fundadores da União Europeia. E é por isso que a liberdade de os habitantes da UE circularem e residirem livremente em qualquer lugar da UE corresponde ao coração dos direitos pessoais conferidos pelo Tratado da União, e a um importante motor do mercado único.
A pandemia de COVID-19, e as medidas de para limitar a propagação do coronavírus na origem da doença, são uma evidente ameaça a esse direito, numa Europa devolvida a controlos transfronteiriços que se julgavam abolidos.
A liberdade que o passaporte sanitário promete restaurar é então um direito de cidadania, e o passaporte arrisca-se a ser um marco para a circulação urbana no século XXI. O passaporte e suas variantes multiplicam-se a um ritmo aterrador.
Alguns países europeus começaram a emitir certificados de imunidade multilaterais para pessoas vacinadas, aliviando os seus titulares de quarentenas e testagens no posto de fronteira. Assim sucede no Chipre, na Dinamarca e Suécia, Estónia, Grécia e Sérvia, Polónia e Hungria, em fileiras que crescem na proporção da taxa de vacinação e com a aproximação da época alta. Os Estados Unidos e o Reino Unido discutem o seu modelo, e negoceiam com parceiros o acesso aos seus viajantes vacinados. A China implementou um certificado digital de vacinação COVID-19, e que aguarda apenas reconhecimento internacional. Israel, líder destacado na vacinação, aprovou um Green Pass para vacinados e recuperados, garantindo o acesso a atividades antes vedadas. O passe, que pode ser impresso ou apresentado através do telemóvel, não serve ainda para viajar internacionalmente, mas foi já incluído num acordo-piloto com o Chipre e a Grécia, que ávidos aguardam por um bálsamo para um turismo desfalecido.
Disto, que é muito, o Direito disse ainda muito pouco. Mas já disse alguma coisa.
Pandemia e exceção
A tensa relação entre restrições à circulação e o Direito Europeu: casa de ferreiros, espeto de pau
Os parágrafos anteriores são um presságio ominoso para o projeto europeu: o de um direito de circulação à la carte, assente em alianças antigas, reconhecido em termos desiguais e irregulares, e adjudicado através de critérios estranhos ao Direito da União. Um caleidoscópio de medidas divergentes e constantemente atualizadas, de competências usurpadas e atropeladas, de confusão entre nacionalidade, território, e risco de saúde pública, e sacrifícios inaceitáveis de segurança jurídica, proporcionalidade e não-discriminação.
O desafio é tanto mais complexo atendendo à presumível legalidade de tais medidas, ou pelo menos à sua difícil contestação jurisdicional. As razões de saúde pública (a par das razões de ordem pública e de segurança) são um fundamento universal de restrição à livre circulação de pessoas, e também um seu limite, explicitamente admitido no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[1] Noutras ocasiões, tais razões foram invocadas algo suspeitamente, por razões económicas, e nisso censuradas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
No entanto, perante uma pandemia de um vírus novo e contagioso, demonstrar que uma medida é desnecessária ou desproporcional, e assim desconforme ao direito da União, não é só uma prova espinhosa: é também um ato de coragem, que só as disposições mais subtis distinguem da irresponsabilidade. Em Portugal, os Tribunais só se terão oposto às medidas de controlo de pandemia em casos contados e isolados, como na célebre decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida em novembro de 2020, que veio sepultar uma controvérsia quanto à aplicação de medidas de privação de liberdade (quarentena, ou isolamento profilático) impostas a título preventivo e sem base legislativa[2]
É então natural que as Instituições da União e os próprios Tribunais não se atrevam a imiscuir-se em normas assentes em estados de emergência, ou outras suspensões da ordem constitucional, e muito menos se atrevam a fazê-lo com apoio no Direito da União.
Uma vez por outra, porém, teriam tido alguma razão. Se o Direito da União foi salvaguardado na forma,[3] não o terá sido sempre na substância. Pense-se na circulação entre Estados-Membros da União com níveis de contágio ou infeção semelhantes. É certo que uma tal restrição assenta num princípio de prevenção, principalmente contra estirpes variantes. No entanto, em paridade de casos por milhão de habitantes, ela parte também de um princípio de desconfiança mútua e de preferência nacional que é contrário ao espírito do Tratado. Se existe contágio generalizado, importa que os cidadãos da União cumpram com as medidas preventivas aplicáveis em determinado território, não necessariamente que cada um “fique na sua terra”.
Essas incoerências manifestaram-se especialmente no controlo de fronteiras terrestres, que em Portugal apenas se suscitou (como só se podia suscitar) em relação a Espanha.[4] Sendo compreensível, nem sempre será lógico: um espanhol no hotel não é mais perigoso do que um português na rua. Esta tentação irracional e protecionista atingiu, porventura, o seu ápice no fim-de-semana de Páscoa de 2021, em que os portugueses ficaram impedidos de circular entre concelhos, e a fronteira com Espanha continuou fechada.[5]
Assim, os turistas espanhóis não podiam desafogadamente entrar no país (teriam, em princípio, de o fazer de avião), mas podiam circular discricionariamente entre concelhos, desde que para aceder ao seu alojamento. Os portugueses podiam livremente regressar ao país, mas ficavam aí circunscritos ao concelho de residência.
Ora, o Direito tem horror ao absurdo. E é absurdo que na casa de ferreiros da Europa, os Estados-Membros ergam paliçadas de pau, num emaranhado opaco e paradoxal onde os direitos se atribuem em função da nacionalidade, do meio de transporte, dos feriados religiosos, dos dias da semana, da relação histórica entre países e outros acessórios alheios à crítica probabilidade de um cidadão estar, ou não infetado com COVID-19.
Com exemplos como este, que sem dúvida proliferaram pela União (veja-se, para amostra, a Perguntas Frequentes e os Conselhos aos Emigrantes nas Viagens para Portugal) a Comissão compreendeu que evitar a discriminação entre nacionais dos Estados-Membros seria uma quimera. O futuro prometia restrições incoerentes e fragmentadas à livre circulação, e um labéu de incerteza e desconfiança quanto ao exercício de direitos na União Europeia que se arriscava a efeitos mais permanentes.
Era preciso fazer alguma coisa.
O passaporte sanitário europeu: uma restrição à circulação para acabar com as restrições à circulação
O passaporte sanitário europeu surge em resposta à proliferação de medidas restritivas de circulação, procurando introduzir alguma ordem e coerência num sistema fatalmente atraído pelo caos.
Os esforços diplomáticos dos Estados-Membros e da Comissão deram frutos. Depois de o Conselho Europeu ter adotado uma Recomendação nesse sentido, depois de Angela Merkel anunciar que os países da União Europeia estavam de acordo quanto a um sistema que uniformizasse as iniciativas nacionais de criação de um passaporte de vacinação,[6] a Comissão aprovou a Proposta de Regulamento n.º 2021/0068, de 17 de março relativo a um quadro para a emissão, verificação e aceitação de certificados interoperáveis de vacinação, testes e recuperação, a fim de facilitar a livre circulação durante a pandemia de COVID-19 (o “Certificado Verde Digital”).
O documento não ignora o paradoxo na sua origem: que o Certificado Verde é uma restrição à circulação criada com o propósito de favorecer a circulação.
É por isso cuidadoso. Aprova um regime intransigentemente provisório. Que se destina a melhorar a circulação durante a pandemia de COVID-19, recusando restrições permanentes dele derivadas. Com a inquebrável noção de que um regime europeu oferece garantias de não-discriminação e proporcionalidade, designadamente, entre cidadãos vacinados e não vacinados, que uma política multilateral seria incapaz de prosseguir.
Destacam-se os seguintes elementos da Proposta de Regulamento:
> Três tipos de certificado: O Certificado Verde Digital deve permitir a emissão, verificação e aceitação transfronteiras de certificados de vacinação, de teste negativo, ou de recuperação da COVID-19. Em princípio, todos são título suficiente para circular livremente na UE. O certificado de vacinação é emitido apenas em relação a vacinas com autorização de introdução no mercado válida na EU. O de teste negativo é emitido a partir dos resultados de testes NAAT (incluindo os testes RT-PCR) e dos testes rápidos de deteção de antigénios constantes da lista estabelecida com base na Recomendação 2021/C 24/01; o de recuperação, pelo menos a partir do décimo primeiro dia após a receção pela pessoa do seu primeiro teste positivo.
> Facilitar, não restringir: o objetivo do Regulamento é facilitar o exercício da livre circulação. A posse de um certificado, em especial de vacinação, não deve constituir uma condição prévia para o exercício da livre circulação. As pessoas não vacinadas devem poder continuar a exercer o seu direito fundamental de livre circulação, se necessário de forma limitada. Se um Estado-Membro continuar a exigir que os titulares de um Certificado Verde Digital sejam sujeitos a quarentena ou teste, deve notificar a Comissão e todos os outros Estados-Membros e indicar os motivos que justificam tais medidas.
> Excepcional e precário: o Regulamento pretende aplicar-se (apenas) durante a pandemia de COVID-19.
> Proporcional: O Regulamento não pode ser interpretado como facilitando ou incentivando a adopção de restrições à livre circulação durante a pandemia. Quaisquer restrições à livre circulação na EU devem ser justificadas proporcionadas e assentes em critérios objetivos e não discriminatórios. A decisão de impor restrições à livre circulação, ou de não o fazer, continua a competir aos Estados-Membros, que devem respeitar o direito da EU.
> Agnóstico quanto à vacinação: o regulamento não deve ser interpretado como estabelecendo uma obrigação ou um direito à vacinação.
> Cada um por si não basta: o propósito da livre circulação na UE durante a pandemia de COVID-19 recorrendo a certificados sobre a situação vacinal, de testes e de recuperação do titular, não pode ser satisfatoriamente atingido pelos Estados-Membros individualmente.
> Gratuitos, autênticos e interoperáveis: Os certificados serão emitidos gratuitamente, em formato digital ou em papel, dependendo da preferência do titular. Os certificados conterão um código QR interoperável, legível por máquina, com os dados essenciais necessários, bem como uma assinatura digital. O código QR é utilizado para verificar de forma segura a autenticidade, integridade e validade do certificado, através de uma infraestrutura digital tendencialmente comum.
> Dados pessoais: Devem limitar-se ao estritamente necessário, e não podem ser conservados por tempo superior ao necessário para atingir a finalidade do certificado.
O Regulamento segue agora para aprovação pelos Estados Membros e pelo Parlamento Europeu.
O Passaporte e o Futuro: Utopia e Distopia
O passaporte sanitário suscita várias dúvidas e dilemas éticos. Felizmente, a maior parte foi abordada e dirimidos pela proposta da Comissão.
Tais dilemas colocavam-se a partir da hipótese de o sistema ser, afinal, um passaporte de vacinação. Nesse contexto, o passaporte abalançava-se para criar uma casta de vacinados, com direito exclusivo à livre circulação, quando ser vacinado não é um mérito, nem depende da vontade de cada um. A vacinação destina-se, de resto, a proteger grupos de risco e a prevenir cadeias de contágio, não a adjudicar direitos de circulação.
Por outro lado, um passaporte de vacinação podia partir de falsas premissas. Se é seguro que a vacina protege contra sintomas graves de COVID-19, não é claro que as pessoas vacinadas sejam incapazes de espalhar a infeção. Atribuir um passaporte apenas aos cidadãos vacinados quando são tão capazes de contágio como os demais seria antijurídico.
A Comissão fintou estas armadilhas com a opção – racionalíssima – de alargar o Certificado Verde Digital aos cidadãos com teste negativo e recuperados de COVID-19. Mas o Certificado Verde continua a ser fonte de muitas apreensões. A sua falsificação será tentadora, sobretudo em países terceiros que o venham a reconhecer.
E o Certificado terá, porventura, impactos horizontais imprevistos nos Estados-Membros, cujos nacionais – os Estados, os Municípios, os particulares em posição de privilégio ou poder – podem ser tentados a utilizá-lo para fins menos moderados do que os pretendidos pela União.Pense-se no festival dos vacinados, no cinema dos testados, no cruzeiro eno resort dos recuperados. O Certificado pervertido: já não um esteio da circulação, mas uma condição de acesso ao comércio e serviços, ao espaço público, à cultura, e até às cerimónias religiosas, mais dividindo e estratificando a sociedade entre ricos e pobres, jovens e velhos, turistas e residentes, Ocidente e o Remanescente. O Mundo convertido numa grande porta de discoteca, onde não faltaria a tentação de passaportes para outras doenças e aflições, e até atestados – gratuitos, autênticos, interoperativos – de comportamento e registo criminal.
Parece fantasioso. Mas, se voltássemos atrás um ano e meio, não nos pareceria fantasioso tudo o que aconteceu até agora? A banalização da segregação corresponde, aliás, a um afloramento pouco distante do afrouxamento de medidas para turistas, quando “ao lado” vigoravam medidas draconianas para residentes e nacionais.
A pandemia recordou-nos do que sempre soubemos: que os grandes processos históricos não se sucedem em virtude de uma introspeção filosófica, mas a partir de um embalo apático. O Mal – o mau Direito, a degradação do processo, a ruína proteção constitucional da cidadania – não é maldade, não é caso pensado, não é deliberação. O Mal é alheamento, o Mal é descuido, e o Mal é banalíssimo.
O Certificado Digital pede por isso aplicação fiel e rigorosa dos princípios nele consignados. Mas pede também vigilância democrática. Não só para evitar que os Estados-Membros o usem para fins políticos e económicos estranhos ao aprimoramento de uma liberdade civil, mas sobretudo para evitar que o Certificado se diversifique e perpetue, como um resíduo totalitário de um tempo opressivo, que sobrevive a ameaça na origem da sua invenção.
Essa chamada convida a uma distinção entre a utopia, o sítio idílico onde não fomos por falta de uma rutura política ou tecnológica, e a distopia, o lugar tecnicamente possível que evitámos por razões morais.
Ora, o Certificado Verde é possível há muito tempo. Evitámo-lo por preferir uma civilização assente na liberdade e no risco a uma sociedade governada pela segurança e o controlo. Evitámo-lo, portanto, por razões morais, que a COVID-19 ainda não mudou. Mas este “ainda” parece cada vez mais frágil.
O passaporte sanitário precisa de carimbo de regresso. Pandemia e distopia têm de acabar no mesmo dia. Caso contrário, atenção. É um ataque à cidade, é um ataque à multidão.
[1] V.g., os artigos 45.º, n.º 3 e 52.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, bem como a Diretiva 2004/38/CE.
[2] Tanto quanto é público, os Tribunais portugueses só declararam ilegais as medidas de privação da liberdade decretadas compulsivamente por autoridades administrativas, realizadas em normalidade constitucional (fora de Estado de Emergência), e impostas na ausência de um teste positivo. E fizeram-no em resposta a pedidos de habeas corpus, por referência a normas de Direito nacional. Os habeas corpus foram apresentados em resposta a ordens ou instruções administrativas de confinamento ou isolamento que em rigor envolviam privação de liberdade, especialmente na Região Autónoma dos Açores e, episodicamente, na Região Autónoma da Madeira. Um resumo das decisões pode ser consultado aqui.. Embora a decisão do Tribunal da Relação tenha sossegado a polémica, e contribuído para reformar as medidas aplicadas nas Regiões Autónomas, foi vastamente criticada, concretamente pelas considerações que lateralmente teceu a propósito dos testes PCR.
[3] Nos sucessivos Decretos de Declaração de Estado de Emergência, as restrições à circulação foram aprovadas “em estrito respeito pelos Tratados da União Europeia”. Nos Despachos contendo medidas aplicáveis ao tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal continental, permite-se o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal continental de todos os voos de e para os países que integram a União Europeia, dos países associados ao Espaço Schengen, e consideram-se “essenciais” os voos cidadãos nacionais da União Europeia, nacionais de Estados associados ao Espaço Schengen e membros das respetivas famílias, nos termos da Diretiva 2004/38/CE.
[4] É curioso que o controlo de fronteiras (ao contrário da simples restrição à circulação) não seja explicitamente admitido por razões de saúde pública, mas apenas por razões de segurança e ordem pública, que o Estado Português usou para justificar o encerramento da fronteira terrestre (cf. o n.º 6 do artigo 6.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação atual, e do artigo 28.º do Código de Fronteiras Schengen, aprovado pelo Regulamento (UE) 2016/399 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, na sua redação atual). É possível que o legislador europeu tenha entendido que as razões de saúde pública podiam restringir a circulação de cidadãos europeus, mas não podiam fazê-lo em razão da nacionalidade – e o controlo de fronteiras será, talvez por definição, uma restrição em função da nacionalidade.
[5] Com exceção do regresso de nacionais, do transporte internacional de mercadorias, de trabalhadores transfronteiriços e de caráter sazonal devidamente documentados, e de veículos de emergência e socorro e serviço de urgência.
[6] Nisso subscrita por António Costa, a propósito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia