Com a emergência e sucesso crescente das tecnologias blockchain – há muito emancipadas da simples associação às bitcoin –, surgem progressivas interrogações sobre a sua eventual aplicação à atividade administrativa: mais concretamente, como forma de tornar mais transparentes, seguras e “imediatas” as relações entre administrados e Administração Pública. Uma interrogação que, aliás, se estende a todas as novidades tecnológicas e ferramentas informáticas que têm vindo a ser desenvolvidas nas últimas décadas: desde os smart contracts até à inteligência artificial, não há inovação que seja, em abstrato e a priori, insuscetível de ser aplicada à (ou pela) Administração Pública, o que impõe uma necessária discussão sobre as potencialidades e riscos da sua transposição para este campo.
Cingindo-nos, nesta sede, à blockchain, um domínio de atividade administrativa que já tem sido equacionado como especialmente apto a servir de “balão de ensaio” é, sem surpresas, o da contratação pública – que, pela sua importância económica e social, surge como uma candidata “natural”, dir-se-ia, à adoção de soluções desde género. Com efeito, estando em causa o dispêndio de dinheiros públicos, todas as medidas que possam aumentar a transparência procedimental e accountability administrativa são naturalmente bem-vindas. De resto, a crescente informatização e desmaterialização dos procedimentos pré-contratuais – hoje, por regra, tramitados em plataformas eletrónicas, numa opção decisivamente desbravada pelo Código dos Contratos Públicos português em 2008 e que as Diretivas europeias de 2014 viriam depois a acolher –, se é certo que teve na sua génese diversas outras preocupações ou objetivos, não deixou de visar, também, uma maior “abertura” na divulgação da informação procedimental a todos os participantes e interessados.
Neste contexto, com base em experiências-piloto ensaiadas na região espanhola de Aragão ou em países como a Colômbia, a Nigéria, a Índia ou a Bélgica, não faltam vozes a preconizar a adoção generalizada da blockchain nos procedimentos de contratação pública[1], substituindo as plataformas eletrónicas atualmente existentes[2] e evitando as divergências jurisprudenciais que se têm colocado relativamente a múltiplos aspetos do regime da assinatura eletrónica das propostas e dos documentos que as integram. Fundamentalmente, invoca-se que as caraterísticas tradicionalmente associadas a um sistema assente em blockchain[3] – maxime, a validação descentralizada da informação inserida por cada participante na cadeia, bem como a respetiva rastreabilidade, permitindo que se saiba sempre, e em cada momento, quem fez o quê e quando – permitem supor que, aplicada à contratação pública, a blockchain introduziria maior transparência, maior segurança e menor complexidade na verificação da informação relevante, constituindo uma ferramenta importante, além do mais, para o combate à corrupção[4] e a práticas anti-concorrenciais pelos operadores económicos.[5]
Não obstante, outros autores há que adotam uma posição mais restritiva, considerando que, por um lado, neste momento, os campos em que a blockchain poderia trazer mais-valias ainda são relativamente circunscritos[6] (apontando-se como exemplos o registo de contratos e o repositório de informação para ESPD e e-Certis)[7] e salientando, por outro lado, a necessidade de uma análise mais aprofundada e de um desenvolvimento da tecnologia (e, porventura, do quadro legal) para responder a alguns dos problemas convocados pela aplicação da blockchain, em especial, no que respeita à necessidade de proteção dos dados pessoais – dando cumprimento às exigências do RGPD e da legislação nacional sobre a matéria – e de segredos comerciais e industriais (e de direitos de propriedade intelectual, em geral), bem como à identificação dos responsáveis pela integridade das informações existentes no sistema, o que coloca problemas de responsabilidade fiduciária e obriga à definição de um modelo adequado de governance.[8]
Além disso, mesmo depois de ultrapassados esses problemas, nem tudo são vantagens na blockchain: além do investimento inicial na implementação de um sistema assente nesta tecnologia e dos custos de formação e adaptação dos recursos humanos (para os habilitar a lidar com as novas ferramentas informáticas), importa não negligenciar inconvenientes como o elevado consumo de energia exigido pela blockchain e a potencial lentidão dos processos em caso de congestionamento da rede, não podendo ainda excluir-se liminarmente a possibilidade de um ataque que comprometa a fiabilidade da informação (ainda que se reconheça que o sucesso de um tal ataque se torna mais improvável pela necessidade de concertação entre mais de metade dos participantes).
Em suma, sem prejuízo de valer a pena continuar a acompanhar a evolução da blockchain, pelo menos nesta fase, parece ser ainda muito cedo para considerar que a sua adoção generalizada seria uma “panaceia” para as dificuldades sentidas no dia-a-dia da contratação pública. O que, em qualquer caso, não impede que o legislador possa eventualmente vir a criar uma disciplina regime experimental, limitada a alguns procedimentos/contratos/entidades, testando os resultados da sua aplicação em ambiente controlado, servindo-se desses dados empíricos para perceber quais os principais inconvenientes encontrados e desenhando depois uma solução normativa, que, se obtiver um veredicto satisfatório na ponderação custos/benefícios, poderá depois ser incorporada no regime geral.
[1] Cf., neste sentido mais otimista, Paulo Madeira, “Blockchain: um contributo para uma nova contratação pública eletrónica”, in Revista de Direito Administrativo, n.º 11, Maio/Setembro de 2021, páginas 109 a 117.
[2] Cujo funcionamento suscita alguns problemas e cujas entidades gestoras operaram durante anos sem adequada regulamentação legal, conforme foi oportunamente sublinhado pela doutrina.
[3] Com isto, não se ignora que há vários modelos possíveis, pelo que a referência no singular se destina a mera simplificação da exposição.
[4] Mesmo sem se referir à blockchain, vale a pena atentar no que se refere na Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021, de 18 de março: “Apesar da implementação do Open Contracting Data Standard ao nível da contração pública, importa intervir implementando-o integralmente na base de dados de contratos públicos e do Observatório das Compras Públicas, melhorando a qualidade da informação e estruturando-a em termos que facilitem a extração e o tratamento dos dados disponibilizados”.
[5] Cf., entre outros, Chan Yang, “Is there a role for blockchain for enhancing public procurement integrity?”, disponível em https://www.oecd.org/corruption/integrity-forum/academic-papers/Chan-Yang-blockchain-public-procurement-integrity.pdf, J. J. Deshpande, M. Gowda, M. Dixit, M. S. Khubbar, B. S. Jayasri e S. Lokesh, “Permissioned blockchain based public procurement system”, in Journal of Physics: Conference Series 1706, 2020, páginas 1 a 9, bem como G. Ogunlela Oyebanjo, H. Ojugbele Olabode e K. Tengeh Robertson, “Blockchain technology as a panacea for procurement corruption in digital era”, inInternational Journal of Research in Business and Social Science, Volume 10, n.º 4, Junho de 2021, páginas 311 a 320, e Temofe Isaac Akaba, Alex Norta, Chibuzor Udokwu e Dirk Draheim, “A framework for the adoption of blockchain-based e-procurement systems in the public sector – A case study of Nigeria”, disponível em https://www.researchgate.net/publication/338552921_A_Framework_for_the_Adoption_of_Blockchain-Based_e-Procurement_Systems_in_the_Public_Sector_A_Case_Study_of_Nigeria/link/5e77682092851cf2719e10f5/download.
Veja-se também a entrada “Blockchain Technology in Public Procurement: Pros and Cons”, de 15 de Agosto de 2019, no blogue https://www.quintagroup.com/blog, bem como o Relatório do World Economic Forum intitulado “Exploring Blockchain Technology for Government Transparency: Blockchain-Based Public Procurement to Reduce Corruption”, de 2020, disponível em https://www3.weforum.org/docs/WEF_Blockchain_Government_Transparency_Report.pdf.
[6] Claramente neste sentido, cf. Albert Sanchez-Graells, “Data-driven and digital procurement governance: Revisiting two well-known elephant tales”, disponível em https://research-information.bris.ac.uk/ws/portalfiles/portal/209011476/Data_driven_procurement_governance_draft_Aug_2019_.pdf.
[7] Neste sentido, cf. Pedro Telles, “Blockchain em contratação pública”, in AA.VV., Concorrência e Sustentabilidade: Dois Desafios para a Contratação Pública – Actas das II Jornadas de Direito dos Contratos Públicos (30 de Setembro a 2 de Outubro de 2020, FDUL) (coord. Miguel Assis Raimundo), AAFDL, Lisboa, 2021, páginas 239 a 244.
[8] Cf., designadamente, Pedro Telles, “Blockchain em contratação pública”, cit., páginas 231 e 232, bem como Raquel Carvalho, “Blockchain and public procurement”, maxime páginas 7 e seguintes (disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/33201/1/BlockchainandPublicProcurement_Archive_4_.pdf).