O Novo Quadro Europeu para a Mobilidade Urbana e a Lei de Bases do Clima
Avançando Além da Eletrificação
A 14 de dezembro de 2021, a Comissão Europeia publicou quatro propostas destinadas a modernizar o sistema de transportes da União Europeia e abordar os principais desafios da mobilidade que as cidades europeias enfrentam.
Uma dessas propostas é o novo Quadro Europeu para a Mobilidade Urbana (“QEMU”) que contém uma lista comum de orientações e medidas a adotar pelas cidades, para as ajudar a reduzir as emissões e o congestionamento, a melhorar a acessibilidade e a segurança rodoviária urbana, resolver os problemas associados ao crescimento do comércio eletrónico e, em suma, tornar a sua mobilidade mais sustentável.
Neste novo instrumento, a Comissão Europeia vem reconhecer explicitamente que a utilização e disseminação de veículos com emissões zero no contexto urbano não será uma medida suficiente para atingir os objetivos, fixados na Lei do Clima, em matéria de redução (em, pelo menos, 55% até 2030 e em 90% até 2050) dos gases com efeito de estufa, colocando agora a tónica na urgência do desenvolvimento das redes de transportes públicos, das formas de mobilidade ativa (deslocações a pé e de bicicleta) e dos serviços de mobilidade partilhada e conectada.
Ou seja, a Comissão Europeia vem alinhar-se com o mais recente compromisso assumido, ao nível da ONU, na Declaração de Transportes COP26, afastando-se de uma abordagem fundamentalmente centrada na gestão do fluxo de tráfego e muito focada na eletrificação dos transportes motorizados, para se aproximar de uma abordagem mais holística, baseada na movimentação de pessoas e mercadorias de forma mais sustentável: um futuro sustentável para o transporte rodoviário exigirá, em simultâneo com a transição para veículos com emissões zero nas frotas urbanas, uma transformação mais ampla do sistema, incluindo o apoio a viagens ativas (a pé e de bicicleta), o transporte público e partilhado, a construção e modernização de centros multimodais, a melhoria da eficiência da logística do transporte urbano de mercadorias e das entregas no último quilómetro com emissões nulas, assim como a necessidade de abordar todos os impactos da cadeia de valor da produção, utilização e eliminação dos veículos.
No QEMU fica, assim, estabelecida uma direção clara para o futuro da mobilidade urbana na Europa: esse futuro deverá proporcionar às pessoas e às empresas uma mistura equitativa de modos de transporte, com prioridade para os modos ativos e o transporte público.
Sendo Portugal um dos poucos países da união europeia onde a rede de autoestradas é mais extensa do que a rede ferroviária em operação, e o segundo país no ranking do rácio de quilómetros de autoestrada por habitante (30cm/habitante), e tendo presente que esse fator favoreceu enormemente fenómenos de suburbanização — permitindo à população fixar-se cada vez mais longe dos seus locais de trabalho (que permaneceram essencialmente localizados nos grandes centros urbanos), e aumentando a distância do movimento pendular — enfrentaremos agora um desafio particularmente hercúleo de reverter todo um país construído com padrões de mobilidade em benefício da utilização do automóvel.
No QEMU, a Comissão Europeia enfatiza ainda a mobilidade como um aspeto crítico da inclusão social e fator determinante do bem-estar humano, especialmente para os grupos mais desfavorecidos, afirmando que o transporte é um serviço essencial no Pilar Europeu dos Direitos Sociais que deverá ficar subjacente a todas as futuras políticas europeias em matéria de mobilidade urbana.
Para impulsionar os países da União Europeia a desenvolver sistemas de transporte urbano sustentáveis e apoiar a mobilidade ativa, a Comissão também anunciou uma abordagem mais ambiciosa ao nível do planeamento, recolha de dados e monitorização dos indicadores relacionados, propondo que, numa primeira fase e até 2025, as 424 maiores cidades, identificadas no Regulamento da Rede Transeuropeia de Transportes (“RTE-T”) — cuja proposta de revisão foi publicada em simultâneo como o QEMU — sejam obrigadas a desenvolver e implementar os seus próprios Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (“PMUS”).
Estes planos estratégicos — tal como definidos no Pacote de Mobilidade Urbana de 2013 — constituirão uma pedra angular na mobilidade das cidades da União Europeia, devendo ser adotados pela autoridade política competente e incluir metas destinadas a tornar os transportes locais mais sustentáveis, seguros e inclusivos, ações para integrar os diferentes modos de transporte (com especial foco nos transportes públicos e na mobilidade ativa) e especificar as concretas medidas legais, fiscais, financeiras e organizacionais necessárias à respetiva implementação.
Com o mesmo objetivo, a Comissão propôs também que o financiamento europeu destinado ao setor da mobilidade e dos transportes passe a ser preferencialmente direcionado para as cidades que tenham PMUS.
Os 11 nós urbanos da RTE-T em Portugal são: Barcelos, Braga, Coimbra, Évora, Faro-Loulé, Guimarães, Funchal, Leiria, Área Metropolitana de Lisboa, Ponta Delgada, Área Metropolitana do Porto, Vila Nova de Famalicão e Viseu.
No âmbito do novo QEMU, a Comissão Europeia publicará ainda, no primeiro trimestre de 2022, novas orientações sobre o transporte de passageiros a pedido (táxis e veículos privados de aluguer com condutor (PHV)) e promoverá, no decurso deste ano, um estudo pormenorizado para identificar e clarificar as soluções digitais disponíveis para permitir a criação de zonas com baixas emissões mais eficazes e user-friendly e a adoção de outros tipos regulamentação em matéria de acesso de veículos aos centros urbanos.
Por fim, e com o intuito de acelerar a digitalização e inovação, a mobilidade urbana passará também a ser incorporada nos trabalhos legislativos europeus, atualmente em curso, sobre o fornecimento e o tratamento de dados comercialmente sensíveis para os serviços de mobilidade digital multimodal (nomeadamente, aplicações de Mobilidade de MaaS) e sobre a criação de um espaço comum europeu de dados de mobilidade.
Já no plano do direito interno, entrou em vigor, no passado dia 1 de fevereiro de 2022, a Lei de Bases do Clima nacional (Lei nº 98/2021, de 31 de dezembro) que, em harmonia com as políticas e objetivos europeus, contém diversas disposições aplicáveis ao setor da mobilidade urbana e dos transportes, realçando a importância dos transportes públicos e dos modos ativos de deslocação, e atribuindo ao Governo o dever de aprovar, num prazo de 24 meses, um plano de mitigação para o setor dos transportes.
Recorda-se que as emissões do setor dos transportes têm vindo a aumentar continuamente desde 2013, e que, em 2019, este passou a ser o setor com maior peso (28%) nas emissões do país, sendo o transporte rodoviário responsável por mais de 95% das emissões deste setor e também a principal causa da poluição do ar nas cidades.
Destaca-se ainda que é a primeira vez que, em Portugal, uma lei atribui ao Estado (administração, direta, indireta, regional e local) a obrigação de promover os modos ativos de transporte/deslocação, reconhecendo-os como uma das formas privilegiadas de descarbonização da mobilidade, e especificando os domínios onde os diversos níveis da administração deverão agir, nomeadamente através (i) da elaboração e implementação de estratégias de âmbito nacional, regional e local de mobilidade pedonal e em bicicleta; (ii) do desenvolvimento da intermodalidade dos transportes públicos com o uso da bicicleta; (iii) da atribuição de incentivos à aquisição e utilização de bicicletas; (iv) da oferta de sistemas públicos de bicicletas partilhadas e (v) da criação de redes cicláveis seguras.
Especificamente em matéria de mobilidade e transportes, a Lei do Clima vem:
(a) Impor a eliminação progressiva, até 2030, dos subsídios relativos a combustíveis fósseis ou à sua utilização, fixados na legislação nacional (sejam eles diretos ou concedidos através de benefícios fiscais);
(b) Subordinar a política energética nacional ao princípio da descarbonização da mobilidade, privilegiando o sistema de mobilidade em transporte coletivo, os modos ativos de transporte, a mobilidade elétrica e outras tecnologias de zero emissões, a par da redução da intensidade carbónica dos transportes marítimos e aéreos;
(c) Atribuir ao Estado a obrigação de desenvolver uma rede de transportes públicos que integre tendencialmente veículos de emissões reduzidas ou sem emissões e de assegurar a promoção de serviços de mobilidade integrados e multimodais;
(d) Determinar que as regiões autónomas e as autarquias locais desenvolvam, no âmbito dos seus territórios, PMUS que integrem serviços de mobilidade sustentável;
(e) Determinar que os municípios e as comissões de coordenação e desenvolvimento regional aprovem, no prazo de 24 meses, planos municipais e planos regionais (respetivamente) de ação climática;
(f) Atribuir ao Estado a obrigação de incentivar a descarbonização do transporte de mercadorias nas suas diversas modalidades;
(g) Atribuir ao Estado as obrigações de incentivar a aquisição de veículos elétricos, híbridos ou movidos a gases renováveis ou outros combustíveis que não emitam gases com efeito de estufa e de desenvolver uma rede pública de carregamento de veículos elétricos (com ou sem cooperação com os setores privado, social e cooperativo);
(h) Estabelecer o ano de 2035 como a data de referência para o fim da comercialização de novos veículos ligeiros movidos exclusivamente a combustíveis fósseis; e
(i) Permitir às regiões autónomas e autarquias locais a instituição de limites à circulação de veículos automóveis em determinadas vias ou zonas, em razão dos impactos climáticos, do ruído ou da qualidade do ar.
No que se refere, em particular, às medidas relacionadas com o parque e circulação automóvel, e considerando que a transição para uma frota de veículos elétricos é, por um lado, um processo moroso e manifestamente insuficiente para dar resposta às metas climáticas definidas e, por outro, uma medida incapaz de resolver muitos outros problemas relacionados com a utilização do automóvel nas zonas urbanas (como o congestionamento e a absorção do espaço público), a Lei do Clima poderia ter sido mais ambiciosa e estabelecer igualmente metas concretas para a redução do número de automóveis e respetiva utilização em contexto urbano.
Nos próximos anos, estes dois instrumentos — a Lei de Bases do Clima e o QEMU — que realçam a importância dos transportes públicos e das formas de mobilidade ativa serão, assim, os pilares basilares das políticas para a mobilidade urbana.
E poderemos ainda aventar que a iminente crise energética, resultante das sanções impostas à Rússia no contexto da invasão da Ucrânia, contribuirá certamente para a aceleração desta tendência, tal como já prenuncia, de resto, o estudo recentemente publicado pela Agência Internacional da Energia, no qual — entre várias estratégias para atenuar os danos económicos da atual falta de oferta de petróleo — se propõe a adoção de um conjunto de medias que, inevitavelmente, passam pela alteração dos atuais padrões de mobilidade e pela redução do uso do automóvel nas cidades, nomeadamente, através da interdição da utilização de veículos automóveis em determinados dias da semana, da redução dos custos dos transportes públicos e do incentivo aos modos de mobilidade suave e de partilha de carros.