1. Introdução
O objeto do presente artigo prende-se com uma breve análise do enquadramento jurídico das Initial Coin Offering (“ICO”) em Portugal. A expressão é utilizada para descrever as operações de financiamento de projetos empresariais ou organizacionais mediante a emissão de criptoativos.
Com efeito, as ICO apresentam uma estrutura semelhante à de uma oferta pública de distribuição de valores mobiliários, designando um processo de oferta, particular ou pública, de um conjunto de ativos virtuais (tokens). Na ausência de um regime jurídico específico, cumpre fazer um breve excurso sobre se, e em que medida, pode a emissão de certos tokens, pela sua natureza, estar sujeita às regras vigentes sobre valores mobiliários e sua distribuição ao público.
2. As tecnologias subjacentes às Initial Coin Offering: Blockchain e Smart Contracts
A Blockchain é uma das principais tecnologias sobre as quais assenta uma Initial Coin Offering. Trata-se de uma base de dados distribuída e imutável, gerida de forma descentralizada e que opera normalmente de forma autónoma, com uma verificação algorítmica e criptográfica associada[1], onde são registadas as transações que envolvem o ativo subjacente. A tecnologia Blockchain prescinde da tradicional intermediação financeira na verificação das transações (por exemplo a autenticação, identificação das partes e armazenamento de dados), recorrendo antes a métodos criptográficos para validar as operações realizadas. Assim, todos os participantes da rede (também designados por “mineiros”) são responsáveis pela verificação, manutenção e atualização da informação contida na base de dados. A Blockchain apresenta-se assim como uma base de dados cronológica e descentralizada de transações registadas por uma rede de computadores. A grande vantagem que esta tecnologia oferece é o facto de não depender de uma entidade centralizada, mas antes de um mecanismo de consenso na rede que muito dificilmente pode ser corrompido. Por outro lado, permite o acesso generalizado à informação nela contida, diminuindo as assimetrias de informação, e executa as transações de forma mais rápida.
Relacionados com a Blockchain estão também os smart contracts, que representam um conjunto de algoritmos computacionais que permitem, automaticamente, sem intervenção humana e verificadas determinadas condições, executar cláusulas contratuais. Os smart contracts existem há mais tempo do que a Blockchain e o seu uso já é nosso conhecido – é o caso da máquina automática de venda de refrigerantes: uma vez inserido o dinheiro, a máquina realiza a contraprestação mediante a entrega do refrigerante. Assim, a existência de smart contracts não depende necessariamente da sua associação a uma Blockchain. Mas a utilização combinada da Blockchain e dos smart contracts fornece vantagens às partes, na medida em que o modo de execução do contrato é realizado de forma automática e descentralizada.
As emissões de criptoativos operam geralmente na base destas duas tecnologias: a emissão é regulada por um smart contract, que executa de forma automática e sem necessidade de intervenção humana, as respetivas cláusulas contratuais, sendo esse smart contract integrado numa Blockchain que regista todas as transações relacionadas com o ativo subjacente.
3. Tipologias de criptoativos
Quando encarados na perspetiva do seu titular, existem outras finalidades associadas à emissão de tokens, para além do seu desiderato típico de obtenção de financiamento do emitente. Assim, a distinção funcional dos vários criptoativos emitidos leva à sua agregação em diferentes tipologias, distinguindo-se, em geral, os utility tokens, os currency tokens, os investment tokens, os hybrid tokens e, ainda, os non-fungible tokens.
Os utility tokens são criptoativos que conferem o direito à utilização de um determinado produto ou serviço oferecido ou prestado pelo emitente. São assim caracterizados por uma finalidade de consumo, podendo ser configurados em diversos moldes, e conferem ao seu titular direitos como o de aceder a uma determinada base de dados operada pelo emitente, aceder a uma plataforma eletrónica desenvolvida pelo emitente ou o direito a adquirir um determinado produto ou serviço prestado pelo emitente. Um exemplo de utility token é a criptomoeda Filecoin, que confere o direito de utilização de um espaço virtual de armazenamento de dados.
É comum também falar-se nos currency tokens para designar os criptoativos que cumprem as funções associadas à moeda: meio de troca, unidade de conta, reserva de valor e meio de pagamento. Trata-se de uma representação de valor que não é emitida por um banco central ou autoridade pública, nem o seu valor se encontra indexado a uma moeda fiduciária. Assim, embora cumpram funções semelhantes às da moeda, os currency tokens não dispõem de curso legal ou poder liberatório. A possibilidade de receber certos bens no OpenBazaar (como um par de sapatos) mediante a entrega de Bitcoin, constitui um exemplo da utilização dos currency tokens.
Os investment tokens, também designados por security tokens são criptoativos que cumprem uma função de investimento, no sentido em que colocam o seu detentor na titularidade de posições jurídicas ativas na sociedade emitente como sejam, por exemplo, o direito a receber lucros, o direito a receber juros ou o direito a receber outras mais-valias financeiras associadas à performance dedeterminado projeto que a sociedade emitente pretende financiar. Um conhecido e polémico caso de emissão de investment tokens é o caso das criptomoedas DAO (Decentralized Autonomous Organization) emitidas pela alemã Slock.it GmbH, que será analisado em maior detalhe de seguida.
Quando os tokens reúnem características que os permitem reconduzir a mais do que uma das funções acima descritas, designam-se de hybrid tokens. Um exemplo interessante de um hybrid token é a Binance Coin, que confere ao seu titular o acesso à plataforma de negociação Binance Exchange, acompanhado de um desconto no pagamento das comissões de transação. Adicionalmente, a plataforma Binance redistribui uma parte dos seus lucros aos titulares do token, pelo que este token compreende, em simultâneo, uma componente de utility e outra de investment.
Finalmente, falamos de non-fungible tokens (“NFT”) quando nos referimos a criptoativos em relação aos quais não se verifica a característica de fungibilidade. Tratam-se assim de ativos virtuais únicos e insubstituíveis, que não podem ser replicados. Estes criptoativos estão registados numa Blockchain que, através do mecanismo de verificação descentralizada e numa base peer to peer, assegura que nenhum non-fungible token pode ser replicado. Estes tokens podem ser utilizados para criar objetos colecionáveis únicos, itens digitais exclusivos ou até mesmo obras de arte. Um famoso exemplo da venda de um NFT é o caso do NFT vendido por um artista digital conhecido como Beeple, que vendeu através da leiloeira Christie’s uma colagem de imagens criada a partir de mais de cinco mil imagens, por 69 milhões de euros.
4. Os investment tokens como valores mobiliários?
De todas as tipologias de criptoativos acima enunciadas, destaca-se a atenção voltada para a emissão de investment tokens, cuja natureza por vezes os poderá levar à qualificação como valores mobiliários, com a consequente aplicação das normas legais aplicáveis a estes instrumentos, nomeadamente as regras sobre ofertas públicas e elaboração de prospeto.
Este tema foi já analisado nos Estados Unidos pela United States Securities and Exchange Commission (“SEC”) e, em Portgual, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”) emitiu também um comunicado destinado às entidades envolvidas no lançamento de ICOs. Vejamos de seguida cada uma dessas abordagens.
4.1. A abordagem da United States Securities and Exchange Commission: O caso da (primeira) DAO
Em 2016 Christoph Jentzsch divulgou o white paper subjacente a uma ICO da Slock.it GmbH, que visava a angariação de participantes numa Decentralised Autonomous Orgnanisation (“DAO”) – entidade virtual, autónoma e descentralizada cujos critérios de execução se encontram disciplinados nos smart contracts desenvolvidos pelos seus fundadores – que tinha por objetivo operar como uma entidade com fins lucrativos mediante o financiamento de projetos, através de fundos provenientes da venda de tokens DAO aos investidores. A DAO criada pela alemã Slock.it funcionava assim sem uma administração centralizada e as suas decisões eram tomadas em função da vontade dos titulares de tokens DAO. O propósito da sua constituição era a obtenção de financiamento e a detenção dos tokens DAO conferia aos seus titulares uma participação no sistema DAO, direitos de voto e a possibilidade de recolher dividendos de projetos financiados pelo mesmo. Uma vez submetida uma proposta de projeto, o smart contract subjacente à Blockchain da DAO permitia que os titulares de tokens exercessem o seu direito de voto no sentido de aprovar (ou não) o financiamento do projeto. Depois de aprovado, o projeto era adicionado à plataforma DAO e se os objetivos definidos pelo projeto fossem cumpridos tinha lugar a distribuição proporcional dos lucros aos titulares dos tokens DAO, como forma de retorno do seu investimento. Adicionalmente, os titulares de tokens DAO poderiam rentabilizar os seus investimentos através da venda desses criptoativos em mercados secundários.
No dia 25 de julho de 2017 a SEC emitiu um relatório de investigação sobre os tokens emitidos pela DAO criada pela Slock.it GmbH, onde considerou que estes tokens deviam ser qualificados como securities, em particular contratos de investimento (investment contracts) para efeitos do previsto na Section 2(a)(1) do Securities Act e na Section 3(a)(10) do Exchange Securities Act. Para o efeito a SEC aplicou o Teste Howey (oriundo de uma decisão do Supremo Tribunal Norte-Americano de 1946), que determinou que os token-DAO seriam qualificados como securities (valores mobiliários) com base nos seguintes critérios:
1- Investimento pecuniário: considerou a SEC, com base na jurisprudência existente, que o investimento de dinheiro não implica necessariamente um investimento através de moeda com curso legal nem de dinheiro físico, antes podendo ocorrer mediante uma mera contribuição de valor, pelo que um investimento efetuado com criptomoedas (neste caso a Ether) configura um investimento pecuniário;
2- Empreendimento comum: concluiu a SEC pela existência de uma situação de comunhão, na medida em que os titulares dos tokens DAO consignavam os seus investimentos em Ether a um fundo comum armazenado no endereço Blockchain detido pela DAO;
3- Expectativa razoável de obter lucros: o objetivo do projeto DAO era o de obter lucros através do reinvestimento dos valores pecuniários dos investidores no financiamento de determinados projetos sujeitos a prévia aprovação dos titulares dos tokens DAO. Consoante a valorização de cada projeto, seria objetivamente expectável que a DAO distribuísse os lucros obtidos com o projeto pelos titulares dos tokens DAO, pelo que concluiu a SEC que, pelo menos em parte, existia uma expectativa razoável de obter lucros;
4- Derivado dos esforços de gestão de outros: trata-se de um critério que assenta na ideia de que o retorno do investimento depende dos esforços de outrem e não dos investidores. A SEC concluiu que que os titulares dos tokens DAO dependiam dos conhecimentos dos fundadores da Slock.it, da sua gestão da plataforma e da escolha dos projetos de investimento colocados para votação dos titulares dos tokens.
4.2. A abordagem da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários
Também em Portugal já teve lugar um primeiro posicionamento do regulador sobre esta matéria, embora não tenha sido analisado nenhum caso concreto a este respeito.
No dia 23 de julho de 2018 a CMVM emitiu o Comunicado da CMVM às entidades envolvidas no lançamento de “Initial Coin Offerings” (ICOs) relativo à qualificação jurídica dos tokens, onde alerta as entidades emitentes sobre a necessidade de realizar uma avaliação prévia sobre a natureza jurídica do token a emitir, destinada a verificar se esse token, pelas suas características, poderá ser qualificado como um valor mobiliário para efeitos do Código dos Valores Mobiliários, com a consequente aplicação do regime jurídico dos valores mobiliários. Em particular, a CMVM alerta para a possibilidade de certas tipologias de criptoativos, pela sua natureza, poderem ser qualificados como valores mobiliários à luz do artigo 1.º, n.º 1 alínea g) do Código dos Valores Mobiliários, de acordo com o qual são valores mobiliários quaisquer “documentos representativos de situações jurídicas homogéneas, desde que sejam suscetíveis de transmissão em mercado”.
Entendeu a CMVM que: “Tendo em conta que, à partida, os tokens podem ser considerados documentos (ainda que desmaterializados) e que todos os tokens gerados no âmbito de um ICO serão homogéneos e suscetíveis de ser transmitidos em mercado (requisitos que sempre cumprirá aferir em cada caso concreto), importa em especial clarificar, para efeitos da qualificação de tokens como valores mobiliários, o requisito relativo a situação jurídica representada e tida como relevante para efeitos da interpretação do artigo 1.º, alínea g), do CdVM. A esse respeito é possível concluir que:
1- Um token será um valor mobiliário caso seja um documento representativo de uma ou mais situações jurídicas de natureza privada e patrimonial (i.e., direitos e deveres);
2- Um token será um valor mobiliário caso, tendo em conta a(s) situação(ões) jurídica(s) representada(s), seja comparável com valores mobiliários típicos;
3- Para efeitos do previsto no número anterior, deve nomeadamente considerar-se a previsão, nas informações disponibilizadas pelo emitente, de elementos dos quais possa decorrer uma vinculação do emitente à realização de condutas das quais resulte uma expectativa de retorno para o investidor, como sejam:
a) O direito a um rendimento (por exemplo, se o token conferir direito a lucros ou a um juro); ou
b) A prática de atos por parte do emitente ou entidade relacionada adequados à incrementação do valor do token.”
Partindo de um critério de comparabilidade funcional com outros valores mobiliários, a CMVM alerta assim as entidades envolvidas no lançamento de ICOs para a circunstância de determinados tokens poderem ser qualificados como valores mobiliários, com a consequente aplicação do regime jurídico respetivo.
5. Conclusão
Saber se uma determinada emissão de tokens envolve ou não a oferta e venda de valores mobiliários – independentemente da terminologia utilizada para designar o ativo em questão – dependerá dos factos e circunstâncias concretas, incluindo as realidades económicas da operação. As entidades envolvidas no lançamento de uma ICO devem ter sempre presente a possibilidade de os criptoativos a emitir poderem ser qualificados como valores mobiliários – em particular no caso dos investment tokens e dos hybrid tokens com uma componente de investimento – e realizar uma competente avaliação prévia desses criptoativos. Em certos casos, poderão aplicar-se as regras relativas aos valores mobiliários, destinadas a tutelar os investidores durante o processo da oferta e a fornecer informações materiais necessárias para a tomada de decisões de investimento informadas, como sejam, no caso das ofertas públicas, a obrigação de publicar um prospeto sujeito à prévia aprovação da CMVM.
[1] João Vieira dos Santos, Desafios Jurídicos e Regulatórios das Initial Coin Offerings (p. 299-325)in FinTech II – Novos Estudos sobre Tecnologia Financeira (coord. António Menezes Cordeiro, Ana Perestrelo Oliveira e Diogo Pereira Duarte, Almedina, 2019).