Marcas e NFTs – Brands going digital

A expansão do uso de marcas para domínios digitais e o crescimento do mercado dos NFTs suscita questões interessantes a propósito da proteção da propriedade intelectual das empresas que pretendem entrar neste mercado e dos novos riscos e oportunidades que às marcas se apresentam neste contexto.

This article was written in co-authorship by Joana Piriquito Santos, Managing Associate at Vieira de Almeida, and João Carlos Assunção, Associate Vieira de Almeida.


A marca é um direito de propriedade industrial, sujeito a registo, constituído por um sinal ou conjuntos de sinais destinados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas. Em traços largos, o registo de marca confere ao seu titular o direito de impedir terceiros de usar, sem o seu consentimento, qualquer sinal idêntico ou semelhante à marca registada em relação a produtos ou serviços idênticos ou afins ao abrangidos pelo registo.

Desta forma, com a expansão do uso de determinadas marcas para domínios “digitais”, e o crescimento do mercado dos non-fungible tokens (“NFTs”), as marcas são naturalmente chamadas a desempenhar um papel preponderante na definição de estratégia de proteção da propriedade intelectual das empresas que pretendem entrar neste mercado.

NFTs são unidades de metadados de propriedades únicas e inalteráveis, assentes em tecnologia blockchain, que armazenam informação. Embora nem sempre seja o caso, os NFTs podem ser usados como certificados de propriedade e identificação de bens virtuais ou físicos, guardados numa rede computorizada que assegura a existência do certificado e do bem em si, sendo também suscetíveis de ser transacionados e colecionados. Apesar do carater único de cada NFT, podem ser produzidas mais NFTs com o mesmo conteúdo digital, como impressões de uma obra de arte física. O valor destes ativos é desde logo determinado em função da sua oferta e procura (rarity/scarcity). O facto de ser único e não manipulável facilita a verificação e validação da sua proveniência e titularidade, e incrementa a confiança na transmissão dos mesmos.

O uso de NFTs está intimamente ligado com os chamados “virtual goods” ou, em português, “bens virtuais”. Estes bens podem ser definidos como objetos não físicos, que podem ir desde cartas virtuais colecionáveis com imagens de futebolistas à roupa digital para ser usada num avatar, ou seja, na representação gráfica de um jogador num determinado ambiente digital.

Apesar de ainda existir algum ceticismo, mesmo entre grandes empresas, no que concerne às vantagens da entrada no novo mundo dos NFTs e da tecnologia blockchain, há várias marcas que já começaram a testar as potencialidades destes meios. 

À partida, e como se constata através de exemplos como a Adidas, a Red Bull, a Coca Cola, a Lamborghini, ou a NBA, são sobretudo marcas com elevado selling power que começaram a apostar neste tipo de virtualização das suas marcas e dos seus produtos, ou de elementos publicitários relacionados com os mesmos.

As potenciais vantagens do lançamento de “pacotes” de NFTs para os titulares de marcas são, naturalmente, a diversificação das fontes de rendimento, através da venda destes itens digitais, o aumento da visibilidade da marca junto do público consumidor (ou, eventualmente, junto de novos segmentos de mercado), e mesmo a sensibilização para causas sociais apoiadas pela empresa (caso da Coca-Cola, que anunciou um conjunto de NFTs colecionáveis associados a objetos icónicos relacionados com a marca a ser comercializados num leilão solidário a propósito do Dia Internacional da Amizade).

O lançamento deste tipo de produto é, também, para algumas indústrias, como a dos e-sports, futebol, musical e cinematográfica, uma forma de consolidar a sua fanbase, através do lançamento de conteúdos relacionados com determinados videojogos, eventos, desportistas, artistas, álbuns, filmes ou séries.

Também os criadores de conteúdos digitais veem nos NFTs uma maneira de promover uma nova forma de propriedade sobre o seu conteúdo e de diversificar a exploração do mesmo. E mesmo na ótica do utilizador se pode vislumbrar uma possibilidade de lucro e monetização da transação de NFTs: imagine-se o utilizador de um jogo on-line que compra itens para caracterizar a sua personagem e posteriormente os vende por um preço mais elevado a outro utilizador, utilizando o acréscimo para adquirir novos e mais valiosos NFTs para usar no contexto do jogo.

Ora, é em face desde novo mundo que nos propomos a analisar as implicações que os NFTs e os “bens digitais” têm no Direito de Marcas, começando pelo potencial impacto nas estratégias de registo deste direito de propriedade industrial. 

i. O registo de marcas no mundo digital à luz das recentes recomendações do Instituto de Propriedade Intelectual da União Europeia

Em face do número crescente de pedidos de registo de marcas para produtos e serviços contendo os termos virtual goods e non-fungible tokens, o Instituto de Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) decidiu divulgar alguma informação sobre a forma como esta entidade está a lidar com tais pedidos.

De facto, aquando da apresentação de um pedido de registo de marca, para além do sinal a proteger, o requerente tem que indicar os produtos ou serviços que a sua marca pretende assinalar, de acordo com a sistema internacional de classificação de produtos e serviços conhecido por Classificação de Nice. E é por este motivo que, em regra, a proteção decorrente do registo de marca apenas abrange os produtos ou serviços (ou seus afins) designados pelo titular aquando do depósito da mesma.

Assim, e havendo diferentes classes de produtos/serviços em que poderiam enquadrar-se os bens digitais com recurso a NFTs, há algumas decisões a tomar por parte de quem quiser registar marcas relacionadas com este tipo de bens.

Consideremos então mais recentes recomendações do EUIPO no que diz respeito à organização dos produtos e serviços que as marcas se destinam a assinalar, no que toca a “Virtual goods” e “NFTs”. Em sumário, de acordo com o EUIPO:

a) Os“Virtual goods” pertencem à Classe 9 (onde tipicamente se incluem aparelhos e instrumentos científicos e programas de computador), na medida em que são tratados como imagens ou conteúdos de natureza digital;

b) Os  serviços relacionados com  virtual goods e NFTs serão tratados de acordo com os princípios estabelecidos para a classificação de serviços em geral.  Por exemplo, a Classificação de Nice (classe 35) já contém serviços como “fornecimento de um mercado on-line para compradores e vendedores de bens e serviços”, que são também adaptáveis à proteção de marcas para serviços relacionados com a comercialização on-line de NFTs (por exemplo, através de on-line marketplaces);

c) A nova versão da Classificação de Nice irá incorporar na Classe 9 o termo downloadable digital files authenticated by non-fungible tokens. Os NFTs irão ser tratados como “certificados digitais únicos registados numa blockchain, que autenticam itens digitais mas são distintos destes”;

d) Os termos “Virtual goods” e non fungible tokens não serão considerados, por si só, suficientemente claros e precisos, o que gera a necessidade de especificar, tanto quanto possível, o conteúdo a que os produtos respeitam (por exemplo, bens virtuais descarregáveis, nomeadamente vestuário virtual, brinquedos virtuais etc.) e o tipo de item digital a que o NFT respeita, sob pena de recusa do registo para os produtos em causa.

Entendimento próximo vale para termos como “Meta” ou “Metaverse” na composição de marcas: a natureza descritiva dos mesmos face aos produtos e serviços em questão leva à necessidade de juntar aos referidos termos outros elementos não descritivos que confiram capacidade distintiva aos sinais em causa, sob pena de recusa do registo de tais marcas.

Do acima exposto resulta ainda que o EUIPO excluiu a possibilidade de estes bens virtuais puderem ser incluídos em classes relacionadas com os respetivos produtos físicos (por exemplo, incluir ténis virtuais na classe 25, onde normalmente cairiam os ténis físicos).

A escolha, embora compreensível, não é totalmente isenta de críticas. Com efeito, poderia valer a pena ponderar o benefício de permitir a inclusão destes bens virtuais na classe onde estão os seus correspondentes físicos. Esta alternativa comportaria diversas vantagens para os utilizadores do sistema de marcas e para o próprio sistema, entre elas:

-Os requerentes/titulares que já protegeriam os seus produtos tradicionais numa classe do produto físico não necessitariam agora de incluir no pedido uma nova classe – a classe 9 –, para os mesmos produtos, mas agora “digitais”, com o incremento de custos que esta inclusão acarreta;

-Evitar-se-ia aumentar ainda mais o âmbito de aplicação de uma classe (a 9) que já era, antes desta nova realidade, das mais abrangentes da Classificação de Nice;

-Por outro lado, também a prova de infração de marcas neste contexto – que, salvo exceções, depende de identidade ou afinidade de produtos e serviços assinalados pelos sinais distintivos em confronto – ficaria provavelmente facilitada para os titulares desses direitos (não se quer com isto dizer que não se configure como possível que, por exemplo, “ténis físicos” e “ténis digitais” possam ser considerados produtos afins, apesar de estarem incluídos em classificações de Nice diferentes).

Não obstante as recomendações do EUIPO, não parece ainda haver uma estratégia standard suficientemente estabelecida no que respeita à proteção de marcas relacionadas com NFTs ou bens virtuais com recurso a NFTs, particularmente no que respeita à adequada organização dos produtos e serviços de acordo com o sistema de classificação internacional, aspeto essencial de uma proteção correta em matéria de marcas.

Em qualquer caso, conseguem-se antecipar cuidados a ter relativamente à proteção de marcas neste contexto. Em sumário:

a) As empresas devem considerar se o universo digital faz parte dos planos futuros e, se sim, considerar registar as suas marcas (ou pelo menos as mais relevantes) para os “novos” produtos e serviços do universo digital. Neste exercício, há que ponderar a dimensão internacional do negócio e qual o âmbito territorial desejado para a proteção e uso das novas marcas, uma vez que a estratégia pode variar em função do território visado;

b) A proteção de direitos de propriedade intelectual deve anteceder a divulgação ou lançamento dos produtos – ou seja, há que ponderar e implementar medidas destinadas a salvaguardar direitos de propriedade intelectual antes da entrada no mundo digital;

c) A elaboração de listas de produtos e serviços adequadas, clara e precisas, bem como o correto enquadramento das mesmas nas classes de Nice, é essencial para obter registos de marcas com o menor dispêndio de tempo e custos, e para assegurar que as mesmas conferem a proteção efetivamente desejada pelos requerentes;

d) Quando há licenças de utilização de marcas em vigor, a adaptação destes acordos ao uso de marcas no mundo digital – sendo este visado pelo titular e licenciado – é sem dúvida recomendável;

e) Pode ser muito importante, sobretudo para determinadas empresas (por exemplo, do setor do desporto, e-sports / videojogos, televisão, cinema e artes do espetáculo, mas não só), adotar novos meios de vigilância e monitorização de potenciais infrações de marcas, tendo em vista a salvaguarda dos seus direitos no mundo digital.

ii. Birkin goes digital mas não é Hermès: e agora?

Para além dos cuidados a ter em matéria de registo de marcas, a comercialização de bens digitais gerou também novas situações de – alegadas? – violações de direitos exclusivos e questões complexas para resolver, no que a este tema diz respeito.

Pergunta-se, por exemplo, se quando uma marca registada para vestuário está a ser usada em roupas virtuais no espaço digital, pode ou não ser gerado risco de confusão ou associação indevida no espírito do consumidor.

No início do ano, a famosa fashion house Hermès intentou uma ação de infração de marcas contra Mason Rothschild, artista que lançou uma coleção de NFTs intitulada de MetaBirkins, relacionada com as prestigiadas malas Birkin da Hermès, em variadas cores e designs. Não obstante, é explicitado no site das MetaBirkins que não existe qualquer afiliação com a Hermès.

Como seria de esperar, a Hermès, que demonstra grande preocupação com a exclusividade dos seus produtos de luxo (como as Birkin, particularmente famosas pelo preço muito elevado e grande lista de compradores em espera) não tolerou a digitalização daqueles, razão por que intentou a referida ação.

 O argumentário da Hermès prende-se, desde logo, com o facto de considerar que a coleção de NFTs de Rothschild, que aquela não autorizou, constitui violação de marca e trade dress (a aparência visual dos próprios produtos), e é suscetível de causar erro e confusão na mente do consumidor, bem como de diluir ou desvanecer o prestígio e capacidade distintiva da conhecida marca Birkin. Por outro lado, a Hermès acusa também Rothschild de estar a lucrar indevidamente com o uso não autorizado de uma imitação da marca, através da venda e revenda dos NFTs em causa.

Numa ação que se antecipa como um importante precedente judicial nesta matéria, Rothschild rapidamente fez saber que considera infundadas as acusações da Hermès, uma vez que, no seu entendimento, as MetaBirkins são uma forma de arte, uma interpretação que retrata malas Birkin imaginárias, ou seja, uma representação artística daquele produto e a visão do artista sobre a marca, e não uma “falsificação digital” das famosas malas da Hermès. O criador em questão fez até uma aproximação do seu caso às conhecidas pinturas de Andy Warhol que retratam a sopa em lata da marca “Campbell’s”.

A ideia de Rothschild é, pois, a de que é legítima a criação artística assente em representações do mundo que o rodeia e é livre a escolha, por parte dos artistas, dos temas que pretendem abordar, e a de que a coleção MetaBirkins não é mais do que uma “expressão”, em forma de arte, dos conhecidos produtos da Hermès, e não uma qualquer versão contrafeita dos mesmos (malas que “nada transportam a não ser um significado”, nas palavras de Rothschild). O nome “MetaBirkins” tenta, precisamente, aludir ao contexto em que a “arte” de Rothschild é disponibilizada – o Metaverso – mas também transportar a visão do artista sobre a própria indústria da moda, de que as Birkin são um privilegiado símbolo.

Na visão da Hermès, trata-se, isso sim, de uma forma de Rothschild capitalizar o prestígio da conhecida marca, ao qual é alheio, através de vendas de produtos virtuais.

O caso não se apresenta fácil nem vai morrer tão cedo: a 6 de maio, foi rejeitada uma motion to dismiss que Rothschild apresentara em março, o que significa que a ação da Hermès irá mesmo avançar.

A decisão deste tipo de caso – o que referimos acima é apenas um exemplo, mas há já outros pendentes – parece depender, entre outros aspetos:

-do âmbito de proteção das marcas em causa (desde logo, para que produtos e serviços estão registadas);

-do prestígio inerente às mesmas na perspetiva do consumidor em apreço (que pode, em certas circunstâncias, estender a proteção da marca para lá do escopo dos produtos e serviços que se destinam a assinalar);

-do modo como é feito o uso das marcas neste contexto, do grau de aproximação ou distanciamento, por parte do alegado infrator, relativo às marcas e seus titulares, e da efetiva suscetibilidade de erro, confusão ou associação indevida no espírito do consumidor.

Não se adivinham decisões fáceis de proferir… mas acompanhar o apressado passo da realidade, e particularmente o avanço das inovações tecnológicas, é indiscutivelmente um dos desafios atuais da ciência jurídica.

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