Um futuro entrelaçado – a estratégia europeia para a circularidade dos têxteis  

A Comissão Europeia aprovou uma estratégia que pretende fazer da Economia Circular o novo paradigma dos modelos de negócio da indústria têxtil e do vestuário.

Este artigo foi escrito em co-autoria por Francisco Granja de Almeida (Associado VdA) e Mariana Vicente (Estagiária VdA)

A circularidade como alternativa sustentável

Segundo a Comissão Europeia, todos os anos cerca de 5,8 milhões de toneladas de têxteis são descartadas na União – o que equivale a aproximadamente 11 quilos por pessoa. Nas cidades do futuro, a descartabilidade de roupa, artigos de uso doméstico, mobiliário e equipamento médico e de proteção, por exemplo, será gradualmente substituída por um modelo de negócio assente na reutilização, reparação e reciclagem – aumentando, assim, o ciclo de vida dos produtos. Na prática, a economia circular implica a redução do desperdício ao mínimo e, numa indústria que abrange 160 mil empresas e emprega 1,5 milhões de pessoas (com um volume de negócios de 162 mil milhões de euros só em 2019 na União) a sustentabilidade desempenhará um papel decisivo no setor têxtil e do vestuário.

Neste contexto, a Comissão Europeia (doravante, “Comissão”) propôs, a 30 de março de 2022, uma estratégia europeia para Têxteis Sustentáveis e Circulares, cujo objetivo passa por instalar um novo padrão em prol da sustentabilidade no setor – centrado em modelos de negócio circulares e cadeias de valor responsáveis.  

A visão da Comissão

A atual conjuntura económica (que recupera da paralisação espoletada pela pandemia de COVID-19 e que, agora, lida com os impactos da invasão russa da Ucrânia) força as indústrias da União a revisitarem os seus modelos económicos, a gestão de cadeias de valor e a utilização de energia. Adicionalmente, de um ponto de vista regulatório, os Estados‑Membros pressionam para a homogeneização das diferentes legislações relativas às obrigações empresariais de gestão sustentável das cadeias de valor, vigilância e reporte de informação sobre sustentabilidade. Assim, e à luz do ambicioso European Green Deal e da “avalancha regulatória” de legislação europeia relacionada com a sustentabilidade e os critérios ESG, a visão da Comissão segue alinhada para o setor dos têxteis e do vestuário – pretendendo que, até 2030, os produtos têxteis colocados à disposição na União Europeia tenham ciclos de vida mais longos, sejam recicláveis, feitos de fibras recicladas, livres de substâncias nocivas e produzidos em respeito pelos Direitos Humanos e pela qualidade do ambiente. Neste novo paradigma, alicerçado na exploração sustentável dos recursos do Planeta, no combate às alterações climáticas e no respeito pelos Direitos Humanos (e, segundo a Comissão, na resiliência e competitividade das empresas europeias) os consumidores finais irão beneficiar de têxteis de alta qualidade a preços acessíveis e os produtores gerirão diligentemente as suas cadeias de valor (diminuindo riscos legais, reputacionais e financeiros) potenciando-se, assim, o desenvolvimento económico sustentável e a substituição efetiva da fast fashion (e dos seus impactos).

Como pode esta visão ser atingida?

i. Requisitos de Ecodesign

O aumento do tempo de vida dos produtos têxteis é apontado como a forma mais eficiente de reduzir significativamente o seu impacto negativo no ambiente. Nesta fase, os designers de produto têm um papel chave, que é reconhecido pela Comissão. Por isso mesmo, a primeira medida é a criação de requisitos de ecodesign, a serem materializados numa Ecolabel – conceito que já está a ser implementado para aumentar a performance de produtos têxteis em termos de durabilidade, reutilização, reparação e reciclagem das fibras – de forma a minimizar a presença de substâncias com implicações preocupantes, prejudiciais à saúde e ao ambiente (reduzindo, assim, os seus impactos adversos). Neste âmbito, cumpre notar também a poluição por microplásticos e a preocupação de que a produção de produtos têxteis tenha em conta a libertação não intencional destes microplásticos durante o ciclo de vida do produto.

ii. Medidas relativas ao tratamento de produtos não utilizados, produtos não vendidos e produtos devolvidos

A segunda medida principal consiste na criação de desincentivos para a destruição de têxteis não utilizados, não vendidos ou que hajam sido devolvidos – uma prática comum no setor têxtil. A Comissão propõe ainda uma obrigação de transparência que requer que grandes empresas reportem o número de produtos têxteis que destroem e descartam, bem como o seu método para a reutilização, reciclagem, incineração ou deposição em aterro.

iii. Passaporte Digital do Produto

Outra medida é o Passaporte Digital do Produto, que pretende materializar o direito à informação do consumidor e do mercado em que o produto circula. O Passaporte Digital do Produto garante o acesso a informação sobre as características de sustentabilidade ambiental de um produto, a sua circularidade e cadeia de valor, capacitando negócios e consumidores a fazerem escolhas mais informadas, melhorando a comunicação e transparência e potenciando a credibilidade e visibilidade de produtos e empresas sustentáveis.

Importa dar nota de que esta ideia do “passaporte do produto” não é nova e já é levada a cabo noutras áreas, nomeadamente, o Passaporte Fitossanitário que entrou em vigor em 2019 e que determina que certo tipo de plantas têm de conter algures na sua embalagem determinados elementos de identificação que permitam um melhor controlo da origem, rota, uso de pesticidas e eventuais doenças que possam transportar.

iv. Combate ao Greenwashing

Reservar as alegações ecológicas para os têxteis verdadeiramente sustentáveis é uma prioridade assinalada pela Comissão. O greenwashing é uma realidade e ameaça as licenças sociais para operar das empresas que fizerem alegações ecológicas não consubstanciadas, bem como compromete a credibilidade das empresas verdadeiramente responsáveis.Ademais, os consumidores dispostos a comprar produtos mais sustentáveis podem sentir-se desencorajados a fazê-lo pela incerteza que rodeia as afirmações das marcas em relação à sustentabilidade – principalmente, ambiental – dos seus produtos. Neste contexto, as ecolabels da União Europeia e outros tipos de certificados que obriguem a análises regulares poderão mitigar riscos e dar garantias aos consumidores.

Cumpre notar, de um ponto de vista regulatório, que o comumente denominado “Regulamento Taxonomia”(já em vigor) tem como objetivo disponibilizar às empresas e aos investidores uma linguagem comum que permita identificar as atividades económicas que poderão ser consideradas sustentáveis, através da implementação de seis objetivos ambientais e da garantia de alinhamento com as “Salvaguardas Mínimas” – que correspondem, em grande parte, ao respeito pelos Direitos Humanos. Coloquialmente apelidado como um “dicionário da sustentabilidade”, o Regulamento Taxonomia (em conjunto com os restantes instrumentos legislativos nesta matéria) aumenta a credibilidade das alegações ecológicas e permite um diálogo alicerçado em conceitos determinados – o que, inevitavelmente, potencia a confiança, o investimento e a alteração de padrões de consumo.  

Quais são os catalisadores desta mudança?

As medidas propostas pela Comissão para o setor têxtil e do vestuário estão alinhadas com o atual movimento europeu de promoção da sustentabilidade – ambiental, social e de boa governança – das atividades empresariais. Este movimento é, simultaneamente, legal e económico, na medida em que chega às empresas por via de novas obrigações de reporte de informação, deveres de cuidado dos administradores e de gestão de cadeias de valor, incluindo requisitos para alegações de sustentabilidade, mas também pela pressão dos consumidores, dos novos requisitos para acesso a financiamento e pela competitividade e resiliência dos negócios sustentáveis.

Por isso, não basta impor novas medidas e há que tecer uma rede de condições favoráveis que propiciem a criação da pretendida “indústria têxtil do futuro”.  Neste sentido, a Comissão refere a criação de Vias de Transição (ou trajetórias de transição), como ferramentas colaborativas para a transformação do ecossistema industrial. Estas Vias de Transição serão criadas em colaboração com stakeholders da indústria e deverão resultar numa visão comum para o ecossistema e em compromissos específicos. Ademais, é expressamente mencionado o papel da inovação e do apoio à investigação e ao investimento, através de estratégias de R&D (Research and Development) e da capacitação para a transição verde e digital. A par com o respeito pelas regras de concorrência e de mercado, estes são os pilares nos quais assenta o sucesso desta transição.

O papel da gestão diligente de cadeias de valor

A Europa está, atualmente, salpicada por Estados onde existem obrigações legais de levar a cabo um processo (mais ou menos profundo ou dinâmico) de diligência devida no que toca ao respeito pelos Direitos Humanos – não só nas atividades próprias da empresa, mas também ao longo da sua cadeia de valor – a montante (fornecedores e prestadores de serviço) e a jusante (clientes e parcerias de negócio). Na trindade Reino Unido, França e Alemanha algumas empresas já têm obrigações legais de diligência ou reporte.

Assim, a inevitabilidade da cristalização das diretrizes de “soft-law” das Nações Unidas e da OCDE num novo paradigma de due diligence  é cada vez mais clara sendo quase certo que o setor têxtil e do vestuário será expressamente visado. Prova disso é a atual redação da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao Dever de Diligência das Empresas em matéria de Sustentabilidade (doravante, “Proposta de Diretiva”) que, no ponto i) da alínea (b) do número 1 do seu Artigo 2.º identifica explicitamente o setor do “fabrico de têxteis, couro e produtos afins (incluindo calçado) e comércio por grosso de têxteis, vestuário e calçado” como de “grande impacto”. Significa isto que, no que diz respeito às empresas deste setor que tenham mais de 250 trabalhadores, em média, e mais de 40 milhões de euros de volume de negócios líquido a nível mundial no exercício anterior ao último exercício financeiro, o dever de diligência aplicar-se-á, caso a Proposta de Diretiva seja aprovada nestes termos.

Em suma, esta Proposta de Diretiva cria a obrigação de determinadas empresas exercerem o seu dever de respeito pelos Direitos Humanos (e o ambiente) levando a cabo um processo dinâmico e contínuo para identificar, prevenir, atenuar, fazer cessar e assumir impactos negativos, reais e potenciais, nos Direitos Humanos e no ambiente, que sejam causados pelas suas próprias operações e respetivas cadeias de valor.

Na prática, este processo contínuo e dinâmico de due diligence deverá ser implementado através da integração do dever de diligência em todas as políticas empresariais e da aplicação de uma política em matéria de dever de diligência que deverá ser atualizada anualmente. Desta forma, em vez de uma análise a riscos de violação dos Direitos Humanos pontual (ou linear), deverá ser levado a cabo um processo de estrutura circular – contínuo e dinâmico.

Conclusão O caminho para uma maior sustentabilidade, transparência e responsabilidade dos diferentes agentes da indústria têxtil requererá um esforço concertado e proporcional, alicerçado na realidade económica das empresas e nos compromissos com a sustentabilidade dos recursos do planeta e das suas comunidades.  Dados os desafios do contexto atual, uma análise crítica à forma como são geridos os ciclos de vida dos produtos e as cadeias globais de fornecimento pode não só alavancar um setor têxtil competitivo, resiliente e inovador, mas também contribuir de forma manifestamente relevante para o desenvolvimento sustentável.

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Francisco Granja de Almeida

Associado | Vieira de Almeida
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