As novidades no campo científico são, geralmente, velhas. Quer isto dizer que, quando chegam ao conhecimento do público, quando tomam forma suficientemente apresentável para serem compreendidas e usadas, já têm muitos anos, décadas ou, até, séculos. Durante todo esse tempo estiveram pensadores e investigadores de várias proveniências geográficas e de vários saberes, afanosamente, a desenvolver diversos aspetos, a dar pequenos passos que, a final, viriam a possibilitar a disrupção. Nessas ocasiões, fala-se frequentemente de “revolução”.
A computação quântica não é exceção, como mostra o breve artigo publicado na APS News, em 1998. Nessa altura, as dificuldades para a construção de um computador quântico eram ainda enormes e pareciam quase inultrapassáveis. No entanto, e como é referido nesse texto, em afirmação atribuída a Peter Zoller, cientista de relevo nessa História: “Although present-day technical difficulties in building quantum computers are enormously daunting, we know of no fundamental principle of physics standing in the way”.[i]
A realidade veio a mostrar isso mesmo e bem depressa. Há alguns anos começaram a aparecer vários protótipos de computadores quânticos e começou a falar-se de uma corrida à computação quântica, principalmente entre a IBM e a Google, contando também com a participação da Amazon e da Microsoft. Em 2019/20, era notícia a supremacia quântica a que a Google, numa parceria com a NASA e o laboratório americano ORNL, teria chegado. Escrevia então a BBC News Brasil que “[o] processador Sycamore executou em 200 segundos uma tarefa que, segundo o Google, os computadores convencionais levariam 10 mil anos para concluir”.
Tentando tornar minimamente compreensível o que está em causa, poder-se-á dizer que de um sistema binário, assente na unidade de informação “bit”, que pode ter um valor de 0 ou de 1, se passa para um sistema quântico, em que a unidade de informação é o “qubit” (bit quântico), que pode assumir o valor de 0 e de 1 ao mesmo tempo. Esta qualidade permite que vários cálculos possam ser realizados em simultâneo, o que tem como consequência principal um extraordinário aumento da rapidez de computação, que permite alcançar resultados antes impossíveis, quer pelo seu volume, quer pelo tempo que demorariam. Uma das questões práticas que esta capacidade de computação coloca é a sua facilidade em quebrar cifras, pensando-se que poderá colocar em causa o sistema atual de segurança, que assenta essencialmente na encriptação. Por exemplo, descodificar uma boa palavra‑passe, para os sistemas atuais pode ainda ser uma tarefa complicada. O número de possibilidades que têm de ser testadas é enorme, o que consome muito tempo. Se fossem testadas em simultâneo, a decifração seria muito rápida.
Para além desta questão de segurança, já que a utilização da computação quântica teria o potencial de permitir quebrar praticamente toda a encriptação feita pelos computadores atuais, esta capacidade de processamento de informação é um enorme desafio em várias áreas. Desde logo, no que diz respeito à proteção de dados e ao desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA). O Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), que já nasceu ultrapassado, seria ainda mais desadequado num cenário de computação quântica e o potencial da IA extravasaria certamente os esforços de regulamentação que se vão fazendo na União Europeia (UE).
Na corrida da computação quântica, parece que a IBM se voltou a impor, tendo colocado, em 2023, o primeiro computador quântico privado em funcionamento numa empresa. Segundo a Computerworld, “[o] IBM Quantum System One, instalado na Cleveland Clinic, é o primeiro computador quântico do mundo dedicado especificamente à investigação na área da saúde, com o objetivo de ajudar a Cleveland Clinic a acelerar as descobertas biomédicas”.
Parece plausível, no que diz respeito à sua acessibilidade, uma comparação com a progressão da Internet, dos computadores “binários” e da IA. Se for semelhante, passará dos centros de investigação para alguns Estados e empresas que tenham capacidade financeira e know-how suficientes, suscitando interesse e adesão, desenvolvendo a tecnologia e baixando os custos de aquisição e utilização, até se chegar ao momento em que todos podem usufruir.
Os tempos estão acelerados e a evolução da tecnologia em áreas diferenciadas potencia desenvolvimentos exponenciais. Nos pouco mais de vinte anos que leva o milénio, passámos de um mundo analógico, em que a vida acontecia essencialmente numa realidade física, para um mundo fortemente digital. Os computadores que usamos, ligados através da Internet, entre si e a outras máquinas, com a permanente produção de dados que a sua utilização gera e que potentes algoritmos usam para aprender, para se autoprogramar, para realizar tarefas e operações até há pouco impensáveis, fazem com que pareça que vivemos dentro de um filme de ficção científica.
Se já é assim atualmente, até para os mais imaginativos se torna difícil perspetivar onde nos poderia levar uma revolução quântica. A MIT News ajuda nesse exercício. No Direito, como a Oeste, (quase) nada de novo. O tempo da tecnologia e o tempo do Direito são muito diferentes. Podemos, a título de exemplo, referir a proposta de Regulamento de Inteligência Artificial da União Europeia, que continua em discussão: enquanto a IA continua a avançar, esse regulamento vai ficando crescentemente desatualizado, mesmo antes de aprovado.
A indústria parece ir forçando o tema da computação quântica, criando a mais recente Patent Trend, sendo o desenvolvimento daquela tecnologia “acompanhado da procura por proteção da propriedade intelectual relativa às inovações nesta matéria”, segundo o Insight de João Carlos Assunção.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) publicou o seu Digital Economy Outlook 2020, que dedica o capítulo 11 a inteligência artificial, blockchain e computação quântica, sendo de grande utilidade para a compreensão do tema, ao nível global, e permitindo um vislumbre de vantagens, inconvenientes e riscos.
Nos EUA, a Emily Grumbling and Mark Horowitz, no âmbito da US National Academies of Science, publicaram o livro Quantum Computing: Progress and Prospects (2019), um extenso relatório sobre o estado atual e o potencial futuro da computação quântica, sendo identificados desafios e condições para a realização do potencial dos computadores quânticos.
Na UE, o tema é abordado a propósito do futuro digital da Europa, apostando-se na criação da European Quantum Communication Infrastructure (EuroQCI) Initiative, que pretende vir a ser uma infraestrutura de comunicação quântica segura, abrangendo toda a UE e podendo vir a integrar outros territórios.
Parece, pois, poder-se concluir que, atualmente, a computação quântica é já uma realidade a uma pequena escala, estando a ser desenvolvida em grandes empresas tecnológicas e universidades. Parece, também, já ter chegado à indústria, onde começa a ter aplicação e a levantar questões que o Direito é chamado a resolver. A par destas realidades, evidenciam-se as preocupações, quer a nível europeu, quer a nível global, de que as iniciativas da UE e da OCDE são manifestações. A computação quântica, que liga a física quântica à computação, é outra fronteira que está a ser ultrapassada, fazendo parte da revolução em curso, a que qualquer dia se chamará nova.
[i] Numa tradução livre: “Embora as atuais dificuldades técnicas na construção de computadores quânticos sejam extremamente assustadoras, não conhecemos nenhum princípio fundamental da física que a impeça”.
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