Introdução
A notícia, conhecida há mais de um ano, caiu com estrondo: a Samsung ia proibir os seus funcionários de utilizarem, em contexto laboral, o ChatGPT.
Aparentemente, e a fazer fé no que à época se tornou público, os funcionários da gigante coreana recorriam a ferramentas de inteligência artificial (nomeadamente o ChatGPT) para corrigirem erros nos seus códigos de programação ou até para os ajudar a preparar atas de reuniões, o que punha em causa a segurança e a confidencialidade de documentos e os procedimentos internos da empresa.
Este episódio levantou a questão: como devem as empresas utilizar a inteligência artificial sem que isso coloque em causa a proteção dos seus direitos num mercado tão concorrencial como é o da tecnologia? Ora, se por um lado é inegável a crescente importância da inteligência artificial na vida das pessoas e das empresas, é também claro que a sua utilização coloca novos desafios em várias vertentes e, particularmente, para o que aqui nos interessa no âmbito dos segredos comerciais.
A este propósito importa, antes de avançarmos, clarificar o que constitui, ou não, nos termos da lei, um segredo comercial.
Segredos Comerciais
O Código da Propriedade Industrial (CPI) estabelece, no seu artigo 313.º, que, para que determinadas informações possam ser consideradas segredos comerciais, estas devem reunir os seguintes requisitos cumulativos:
a) Sejam secretas, no sentido de não serem geralmente conhecidas ou facilmente acessíveis, na sua globalidade ou na configuração e ligação exatas dos seus elementos constitutivos, para pessoas dos círculos que lidam normalmente com o tipo de informações em questão;
b) Tenham valor comercial pelo facto de serem secretas;
c) Tenham sido objeto de diligências razoáveis, atendendo às circunstâncias, por parte da pessoa que detém legalmente o controlo das informações, no sentido de as manter secretas.
Ao contrário do que sucede, por exemplo, com as patentes – sendo que, pela sua própria natureza, o exclusivo concedido a um titular de uma patente pressupõe precisamente que o mesmo divulgue publicamente a sua invenção – os segredos comerciais correspondem assim, no essencial, a informação que é relevante e digna de proteção precisamente por ser secreta. Para além disso, e também ao contrário do que acontece com as patentes, os segredos comerciais não têm um período limitado de vigência, mantendo-se a sua proteção enquanto não forem revelados. Os segredos comerciais são objeto de uma ampla proteção legal. Com efeito, e de acordo com o artigo 314.º do CPI, constitui um ato ilícito a obtenção de um segredo comercial sem o consentimento do respetivo titular, sempre que esse ato resulte do acesso, da apropriação ou da cópia não autorizada de documentos, objetos, materiais, substâncias ou ficheiros eletrónicos que estejam legalmente sob o controlo do titular do segredo comercial e que contenham este segredo ou a partir dos quais o mesmo possa ser deduzido.
Para além disso, constituem ainda atos ilícitos:
- a utilização ou divulgação de um segredo comercial, sem o consentimento do respetivo titular, caso o mesmo o tenha obtido de forma ilegal;
- a obtenção, utilização ou divulgação de um segredo comercial sempre que uma pessoa, no momento da obtenção, utilização ou divulgação, tivesse ou devesse ter tido conhecimento, nas circunstâncias específicas em que se encontrava, de que o segredo comercial tinha sido obtido direta ou indiretamente de outra pessoa que o estava a utilizar ou divulgar ilegalmente;
- a produção, oferta ou colocação no mercado de mercadorias em infração, ou a importação, exportação ou armazenamento de mercadorias em infração para aqueles fins, sempre que a pessoa que realize estas atividades tivesse ou devesse ter tido conhecimento, nas circunstâncias específicas em que se encontrava, de que o segredo comercial tinha sido utilizado ilegalmente.
No entanto, e sem prejuízo do suprarreferido, cumpre notar que esta figura jurídica não é infalível: existem formas lícitas de obter um segredo comercial, nomeadamente a chamada reverse engineering, que consiste, no essencial, na descoberta de um mecanismo através da análise da sua estrutura, função e operação.
Atendendo quer às características dos segredos comerciais, quer à proteção que a lei lhes confere, estes têm sido muito utilizados pelas empresas, sendo, aliás, um caso paradigmático a receita da Coca-Cola que continua, aos dias de hoje, sem ser conhecida e, consequentemente, a merecer proteção legal na sua qualidade de segredo de negócio.
Segredos Comerciais e IA Generativa
Sucede que, desde o advento da Internet o risco de violação de segredos comerciais aumentou drasticamente, dado que aos perigos físicos (como a entrada em escritórios, por exemplo) se vieram somar os riscos típicos do meio digital como, por exemplo, o hacking.
A estes riscos soma-se agora aquele que é criado pelas plataformas de inteligência artificial. De acordo com o Parlamento Europeu: a inteligência artificial (IA) é a capacidade que uma máquina [tem] para reproduzir competências […]como é o caso do raciocínio, a aprendizagem, o planeamento e a criatividade.
Uma das mais conhecidas e populares ferramentas de inteligência artificial é o ChatGPT. No essencial, o ChatGPT é um chatbot que, com recurso a Inteligência Artificial Generativa, consegue responder a questões e estabelecer conversações com os utilizadores. Graças ao sistema de machine learning, o sistema consegue “aprender” / adaptar-se através das sucessivas interações com os utilizadores, afinando e melhorando a qualidade das suas respostas.
Entre as possíveis utilizações do ChatGPT encontram-se, por exemplo, escrever emails, preparar apresentações, escrever (ou corrigir) códigos de computador, resolver problemas de matemática ou responder a questões de cultura geral.
Ora, é inegável que o ChatGPT traz inúmeros benefícios para as pessoas e para as empresas, permitindo libertar mão de obra de trabalhos rotineiros e repetitivos, ou aumentando a rapidez de resposta. No entanto, a sua má utilização ou a sua utilização descuidada pode suscitar problemas de vária ordem, incluindo, para o que aqui nos importa, quando matéria que constitui segredo comercial (e que, como vimos, só é protegida precisamente por ser secreta) é partilhada com versões abertas do ChatGPT. A partilha, por parte de um utilizador, de segredos comerciais com versões abertas do ChatGPT (seja para que este ajude na preparação de um email, na correção de um código ou na preparação de uma apresentação, etc.), acarreta vários riscos. Por um lado, o risco (comum quando se utiliza a Internet) de hacking ou de leaks de informação; por outro, o específico risco da inteligência artificial e destas versões abertas do ChatGPT: dado que esta plataforma é construída com base em inputs e outputs (transformando-se os primeiros em segundos). Significa isto que os inputs que são dados ao ChatGPT, e através do qual este aprende, podem por este ser usados no futuro em resposta a outros utilizadores. Para além disso, as informações provenientes do ChatGPT não constituem, pela sua própria natureza, informações confidenciais, sendo, portanto, insuscetíveis de serem categorizadas como segredo comercial. Significa isto, e pegando no exemplo da Samsung, que um código de programação proveniente do ChatGPT não só fica vulnerável (por poder ser descoberto ou partilhado com outros utilizadores), como não tem a proteção legal que é conferida aos segredos comerciais, pelo que estas ferramentas devem ser usadas com a devida, e possível, parcimónia.
Isto não significa que a única solução para prevenir má utilização ou fugas de informação seja a proibição, por parte das empresas, de utilização do ChatGPT ou de outras plataformas de inteligência artificial que, como vimos, são cada vez mais importantes e trazem benefícios significativos para as empresas. Nesse sentido, medidas como ações de formação e sensibilização dos trabalhadores, guias de boas práticas ou sistemas fechados de inteligência artificial podem ser uma garantia de que os segredos comerciais mantêm a sua proteção, ao mesmo tempo que se retiram todas as potencialidades da inteligência artificial.